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Foto do escritorPaulo Vinicius

Resenha: "Máquinas como Eu" de Ian McEwan

Charlie adquire um Adão, um novo tipo de robô muito próximo ao que é um ser humano. Ele representa o máximo das noções de inteligência artificial criadas por Alan Turing, que vive ainda com seu marido em uma Inglaterra mergulhada por uma terrível crise cuja origem está na perda das ilhas Malvinas.



Sinopse:


Londres, 1982. A Grã-Bretanha perdeu a Guerra das Malvinas. A primeira-ministra Margareth Thatcher tem seu poder desestabilizado ao ser desafiada pelo esquerdista Tony Benn. O matemático Alan Turing vive sua homossexualidade plenamente e suas contribuições para o avanço da tecnologia permitiram não só a disseminação da internet e dos smartphones como a criação dos primeiros humanos sintéticos, com aparência e inteligência altamente fidedignas.

É nesse mundo que Charlie, Miranda e Adão ― o robô que divide a vida com o casal ― devem encontrar saída para seus sonhos e ambições, seus dramas morais e amorosos. O novo romance de Ian McEwan desafia nosso entendimento sobre humanos e não humanos e trata do perigo de criar coisas que estão além de nosso controle.




Um estranho triângulo amoroso


Esse é um livro estranho de se analisar. Máquinas como Eu é o terceiro livro do McEwan que eu leio, além de Reparação e A Balada de Adam Henry. Ambos são livros mainstream lidando com temas não ligados à literatura de gênero. Uma das qualidades do autor é criar narrativas sólidas empregando uma forma de escrita até um pouco hermética, lidando com o emocional dos personagens. Seus problemas são reais e palpáveis, e o leitor é capaz de se colocar no lugar dos personagens ou de sentir empatia por eles. Por essa razão, Máquinas como Eu é um animal estranho: McEwan jogou uma bola curva para si mesmo ao empregar elementos de ficção científica e não foi capaz de entregar uma narrativa competente ao limitar aquilo que ele tem de melhor.


"A moralidade era real, correspondia a valores verdadeiros, o bem e o mal eram inerentes à natureza das coisas. Nossas ações devem ser julgadas nesses termos. Era assim que eu pensava antes de conhecer a antropologia".

Charlie é o nosso narrador em primeira pessoa. Vemos toda a narrativa através de seu olhar. Ele é um cara narcisista, egocêntrico e reativo. Sua idolatria à figura de Miranda incomoda porque ele a coloca em um pedestal tão alto que a desumaniza. Ele é um personagem pouco confiável a partir do momento em que sua visão é deturpada por aquilo que ele deseja para si. Em vários momentos, Charlie irrita com a sua arrogância, não sendo um bom protagonista. Aí é preciso separar o herói e o anti-herói/vilão. O fato de ele me incomodar não é porque ele está fazendo más ações ou tomando decisões ruins; me incomoda o fato de que sua trajetória me foi indiferente. Miranda é uma personagem muito mais tridimensional que ele.


Nossa narrativa começa com a aquisição de Adão por Charlie. O personagem investe boa parte do seu dinheiro em um robô que se parece com um ser humano na inteligência e cujas emoções podem ser pré-programadas. Ele usa o ato de configurar o robô como uma forma de se aproximar de Miranda, sua vizinha de cima de quem ele nutre sentimentos românticos. A narrativa vai girar na estranha relação desenvolvida por Charlie, Miranda e Adão que acaba se apaixonando por ela. Isso gera uma tensão entre o protagonista e o robô. Boa parte da história se passa no quarto em que eles dividem (ora no quarto de Charlie, ora no quarto de Miranda). O protagonista fez antropologia e gasta seu tempo investindo dinheiro em ações. Porém, ele não tem muita habilidade com isso e acaba sempre quebrado ou com pouco dinheiro.


"O presente é o mais frágil dos artefatos improváveis. Podia ser diferente. Qualquer parte dele, ou sua totalidade, podia ser outra coisa. Isso é verdade em todas as escalas, do menor ao maior."


A presença de Turing


O ambiente usado é o nosso mundo, mas com algumas ligeiras diferenças. Uma delas envolve a existência de Alan Turing, que é uma personalidade ainda viva e muito influente. A origem da inteligência flexível que inspirou a criação dos robôs é tudo obra de Turing e seus conceitos. A Inglaterra se envolveu em uma grave crise política após ser derrotada na Guerra das Malvinas. Vemos uma sociedade britânica em polvorosa, marcada por desemprego e desabastecimento que leva a um cenário caótico. O personagem não consegue emprego também por sua incapacidade de tomar a vida para si. Ele se acomodou em uma situação que lhe é confortável.


No mundo criado por McEwan a medicina e a ciência só se encontraram em meados do século XX. Antes disso, as práticas médicas se calcavam em superstições bobas. Aí fica aquele alerta àqueles que imaginam que a obra do autor é baseada apenas na presença de Turing ou no ocaso de Margareth Thatcher. Cuidado! McEwan é um autor que possui uma escrita sutil e por possuir um estilo hermético, as informações aparecem sempre quando você menos espera. Recomendo até que os leitores usem de uma leitura mais atenta para pescar os pormenores e as pequenas sutilezas presentes no texto.



"Atravessamos o gramado cheio de detritos, me entorpeci com truísmos. Ela é o que é. Ela é assim mesmo, e fim de conversa! Ela chega perto do amor com cautela porque sabe como pode ser explosivo. Quanto à sua beleza, na minha idade e no meu estado, eu estava fadado a vê-la como uma qualidade moral, como sua própria justificativa, o emblema de sua bondade essencial, não importava o que ela de fato fizesse."

Porém, preciso pontuar que essa construção de mundo é legal até certo ponto. Máquinas como Eu não necessitava de uma contextualização tão complexa. No fundo, a narrativa é sobre três personagens e seus problemas. O livro possui trechos absolutamente descartáveis e McEwan se perde em longas descrições e debates que em nada contribuem para o foco central que é Charlie, Miranda e Adão. Alguns debates éticos são pertinentes como a percepção torpe de justiça de Adão. Entender como o que Miranda fez a Goring pode ser interpretado como um crime e buscar a letra fria da lei. Por outro lado, a necessidade de pontuar as greves, os movimentos sociais, as intensas negociações do governo, a diplomacia por trás da Guerra das Malvinas... tudo isso de nada serve para a narrativa em si. É quase um desejo de construir uma história alternativa a partir do que eu imaginaria que fosse interessante. Mas... e daí? Temos ótimos livros de história alternativa no mercado com ícones do gênero como Harry Turtledove e David Weber que constroem mundos interessantes a partir da pergunta "e se?" Só que Máquinas como Eu não é uma exploração de mundo, e sim, uma relação entre três pessoas.


Três pessoas em um pequeno ambiente


Charlie é apaixonado por Miranda e desenvolve uma relação baseada em sexo casual. Mas, desde o primeiro momento, percebemos que ele deseja mais. Na mente dele, o sexo é uma escada para uma relacionamento mais íntimo. Mas, ele se encontra travado em como chegar a essa intimidade que levaria a uma relação séria. Ele acaba conquistando Miranda por acaso e através de Adão. O robô funciona como um meio para conquistar um fim. Só que a narrativa fica complicada quando Adão desenvolve sentimentos íntimos pela mulher. Isso gera ciúmes de ambas as partes. Miranda acaba tendo relações com Adão, o que gera indignação da parte do narrador. A questão é: Adão é uma pessoa ou um objeto? Miranda coloca o sexo com Adão como se fosse o emprego de um vibrador. Só que percebemos que Adão pouco a pouco vai desenvolvendo uma personalidade própria.



A personalidade do robô é desenvolvida pelos dois personagens. Eles dividem escolher como o personagem vai ser através de uma tela de configurações. De certa maneira, ele é formado pelo somatório das escolhas de ambos. Suas reações acabam assustando Charlie, que coloca a culpa na maneira aleatória como os dois fizeram essa configuração. Porém, uma questão é: somos o somatório das características de nossos pais? O que representa o "eu"? Nossa individualidade é entendida como parte das nossas relações sociais. Mas, e se nos deparamos com um ser que é configurado? Pode ele estabelecer uma "individualidade"? Fugir de sua programação?


"A questão é que o xadrez não constitui uma representação da vida. É um sistema fechado. Suas regras não são desafiadas e prevalecem constantemente em todo o tabuleiro. Cada peça tem limitações bem definidas e aceita seu papel, a história do jogo é clara e incontestável a cada etapa,e o final, quando chega, nunca é objeto de dúvida. Um perfeito jogo de informação. Mas, a vida, onde aplicamos nossa inteligência, é um sistema aberto. Confuso, cheio de truques, dribles e ambiguidades, de falsos amigos."

Até aí tudo bem. O que me incomoda é o fato de McEwan ser incoerente na forma como emprega a ficção científica. Demonstra claramente alguém que não é acostumado a usar isso como ponto narrativo. O triângulo amoroso não precisava ter um robô como elemento dissonante. Sequer para brincar com a questão da letra fria da lei precisava ser Adão. Poderia ser apenas alguém obcecado por usar corretamente as leis. Quando o autor afirma que o robô é guiado pelas três leis de Asimov (e ele cita isso com todas as letras na narrativa ao empregar a primeira lei), ele se coloca em uma sinuca de bico. Principalmente quando o personagem age de forma incoerente com a qual ele foi programado. Liberdade narrativa uma ova. Existe algo chamado "física do mundo" no qual quando você cria uma lei, você precisa segui-la a menos que você encontre uma brecha nela. Em Eu, Robô Asimov é brilhante ao brincar com as brechas nas leis que ele mesmo havia criado. Aqui, McEwan ignora aquilo que ele mesmo citou apenas porque sim. Oras, se a ideia era tornar o robô humano, para que citar as leis de Asimov?


Outro problema é a falta de progressão no desenvolvimento do personagem. Um ótimo exemplo para comparar com este livro é o conto O Homem Bicentenário, de Isaac Asimov (vou falar muito dele hoje, parece). No conto, vemos um protagonista que aos poucos vai buscando se parecer com um ser humano. Através de pequenas reflexões e conclusões, o personagem vai descobrindo mais sobre si mesmo. Aqui, Adão já é praticamente um ser humano desde o começo. Não há progressão. Muitas vezes é possível até ignorar que Adão é um robô. Se McEwan não cita que ele tem um cabo saindo da barriga ou que ele precisa ser recarregado às vezes, eu não me lembraria disso. E aí, novamente, caio na mesma pergunta: para que um robô? Não havia a menor necessidade sequer de inserir os elementos de ficção científica. Ele poderia ter permanecido apenas na história alternativa como um meio de diferenciar sua narrativa. Mas, peraí... será que precisava mesmo? A história poderia ter se passado até em nosso mundo. Ou seja, toda a bela construção scifi e de criação de mundo é boba no fim das contas.


O que mais me incomodou em toda a leitura é o quanto ela é chata e arrastada. Pensei em abandonar a leitura várias vezes e acabei empurrando com a barriga até o final. A propósito: McEwan não é um autor de plot twists. Sua escrita é segura, sólida e estável. Então não espere surpresas. Estas existem na forma de como os personagens vão terminar ao fundo. Em que ponto eles estarão e como solucionarão as suas questões. Particularmente, achei Máquinas como Eu a leitura mais fraca do autor. A narrativa me desagradou horrores, tirando Miranda, Charlie e Adão são desinteressantes o que tornou a escrita toda muito enfadonha. Quer ler McEwan? Conhecer a genialidade do autor? Leiam Reparação. Livro fantástico. Este aqui? A menos que você tenha um forte interesse em história alternativa, não vai ser uma leitura recompensadora.



Ficha Técnica:


Nome: Máquinas como Eu

Autor: Ian McEwan

Editora: Companhia das Letras

Gênero: Romance/Ficção Científica

Tradutor: Jorio Dauster

Número de Páginas: 304

Ano de Publicação: 2019


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*Material enviado em parceria com a Companhia das Letras





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