O falecimento nesse mês do autor pulp e de terror R.F. Lucchetti escancarou uma visão nada agradável sobre como pouco conhecemos sobre nossa própria produção de literatura de gênero.
No último dia 04 de abril, Rubens Lucchetti faleceu aos 94 anos deixando um legado prolífico para trás. Com mais de 1500 livros publicados, você, leitor, certamente já ouviu falar dele, não é? Não? Pois é, vou dedicar algumas linhas para falar do querido Lucchetti, uma pessoa com uma história de vida fabulosa, mas que amargou aquilo que acontece a vários autores do final do século XX, principalmente aqueles ligados à literatura de gênero: o esquecimento. Pensar que um homem com a produção como a dele há décadas não tem a oportunidade para publicar em uma editora grande é perceber o quanto desprezamos nossa própria cultura. Trago isso para reflexão, principalmente pensando nos amigos escritores que ralam diariamente para conseguir um espaço ao sol. E incluo nessa lista de autores esquecidos outros cujos leitores sequer tem uma pista do que produziram como André Carneiro, Jeronymo Monteiro, Finisia Fideli entre tantos outros. E autores que possuem reconhecimento internacional, mas no seu próprio país de origem são solenemente ignorados, salvo quando acontecem resgates específicos a partir de editoras de pequeno e médio porte.
Lucchetti é mais conhecido por suas histórias do gênero pulp, cuja produção pode ser traçada desde a década de 1940. Na época, o pulp era uma febre e chegava ao Brasil seguindo a moda americana, com revistas de tiragem barata e descartáveis, com histórias beirando o terror e o absurdo. Entre as revistas por onde Lucchetti passou está a Meia-Noite, uma revista voltada para narrativas de lobisomens, vampiros e tantas outras criaturas saídas de nossos pesadelos. Como vários autores de sua geração, Lucchetti não se intimidava em tentar escrever em outros gêneros como o de capa e espada, o de ficção científica e até romances policiais publicados na velha revista X9. Mas, podemos traçar o auge do autor durante o período da ditadura em 1970. Ele conseguiu ocupar os espaços nas livrarias com seus livros de histórias divertidas e envolventes. Lembremos que nesse mesmo período, outra figura com uma trajetória bem semelhante à de Lucchetti conquistava muitos fãs: José Mujica, o Zé do Caixão. O que Mujica fazia nas artes visuais, Lucchetti entregava na literatura. E, claro, em suas tramas cheias de elementos sobrenaturais, se entremeavam as críticas ao regime militar que tirava a liberdade dos brasileiros. Assim como as pornochanchadas da época, os livros de terror e de mistério conseguiu atravessar o olhar rapinante da censura.
Se podemos traçar paralelos também à história dos quadrinhos no Brasil, Lucchetti foi diretor editorial da Cedibra que publicava quadrinhos em formatinho e livros em tamanho mais econômico, visando um maior apelo junto ao público. Ou seja, o autor (e agora editor) seguia a receita dos livros pulp da década de 1920 nos EUA. Pensemos comigo: 1500 livros escritos em toda a carreira. Qual era o ritmo de produção do autor? Bem, vamos inserir mais um elemento nessa equação. Lucchetti era editor e tradutor também. Na Cedibra, ele trabalhava na revisão de obras enviadas por outros autores da casa, além de fazer a tradução do que era publicado posteriormente. Não é absurdo pensar que ele possuía esse volume de produção, já que não haviam muita regras sobre produção editorial na época. Tudo se tateava e experimentava. Pensando em algo parecido, Jack Kirby, um dos ícones dos quadrinhos americanos, produzia mais de uma página de quadrinhos por dia. Ele foi responsável por roteirizar e desenhar mais de um quadrinho das grandes editoras por mês. Quando escutamos relatos de que Lucchetti escrevia um romance a cada três dias, não é nenhuma ficção, com todo o perdão do trocadilho. E o autor nunca conseguiu ter a vida luxuosa que um Stephen King, por exemplo, tem nos dias de hoje. Ainda mais se falamos de Brasil onde a própria profissão de escritor é entendida mais como um hobby do que algo sério.
A produção da Cedibra alcançou a marca de mais de cem livros publicados todo o mês. Duvidam? Na imagem, vocês conseguem ver alguns dos produtos da Cedibra como a Coleção Vagalume, uma febre entre o público infanto-juvenil nas décadas de 70 e 80. Os livros de Lucchetti possuíam um grande apelo popular através de suas capas apelativas, como nos clássicos de Robert E. Howard do Conan, com mulheres em poses sensuais ou em situações sempre sexualizadas. Era a forma de atrair o público masculino que corria para bancas e livrarias em busca do tempero do mês. Grandes autores como Edgar Rice Burroughs, Ray Bradbury, E.E. Doc Smith, todos publicaram nesse estilo de produção. Sem mencionar que Lucchetti aproveitou e deu um tempero brasileiro nas produções, usando títulos sugestivos em suas histórias como "Vampiros não fazem sexo". As tiragens eram imensas, na base das dezenas de milhares de exemplares. Frequentemente se usava do expediente de levar os títulos ao máximo de leitores, usando todo tipo de mercado para isso como armazéns, caminhões de fruta, kombis que vendiam livros em praças a preços populares. Devemos lembrar que a logística na época era péssima e leitores de regiões fora do eixo Rio-São Paulo tinham muita dificuldade em ter acesso a esses produtos. Lucchetti copiou o modelo empregado pela Alpargatas, de vender seus produtos em kombis que iam em praças no interior do Norte e do Nordeste.
Tem uma história bastante curiosa sobre o autor. Às vezes ele publicava usando pseudônimos como Brian Stockler e Isadora Highsmith. Uma vez ele teria ido em uma banca que vendia quinze livros escritos por ele com diferentes pseudônimos. Em uma época onde publicar literatura de gênero não era algo que dava muito dinheiro, publicar dezenas de títulos em velocidade industrial era uma necessidade de sobrevivência. Fora que a Cedibra vai lentamente entrar em declínio com a entrada posterior de editoras como a Globo, a Record e a Ebal. Por falar em José Mujica, Lucchetti escreveu roteiros de filmes para o ator, que rasgava elogios sobre suas produções. Dizia que o escritor era uma das pessoas que melhor entendia a sua visão para os filmes. Infelizmente esse gênero de publicações entrou em declínio no final da década de 1980 e desde então o autor não conseguiu mais ser publicado em grandes editoras. Era encarado como um estilo ultrapassado e fora do contexto das novas publicações que investiam em um estilo mais sério de ficção. A literatura de gênero entrou em uma espécie de apagão por muitos anos. Apenas na década de 2010, Lucchetti recebeu uma nova oportunidade de publicar e reeditar seus materiais, através de uma editora chamada Corvo que resgatava suas histórias em um formato pequeno e acessível. Contudo, conseguir um dos livros poderia se provar bem complicado já que a venda era feita de forma direta. Nos últimos meses o autor esteve internado com problemas de saúde e uma campanha para ajudá-lo com as suas despesas hospitalares ganhou as redes sociais e foi responsável por apresentar o autor para algumas pessoas. Mesmo assim, Lucchetti continua sendo um grande desconhecido do público, o que é uma pena.
E aí entro na discussão dessa matéria já que não valorizamos nossas produções nacionais. No que diz respeito à literatura de gênero, essa é uma grande lacuna que temos. Mal conhecemos aqueles que escreveram terror, fantasia e ficção científica por aqui. E olhe que temos muita gente boa que chegou a integrar coletâneas de melhores histórias do mundo, como André Carneiro que está presente no Big Book of Science Fiction, editado por ninguém menos do que Jeff Vandermeer. O ostracismo pelo qual Lucchetti passou é sofrido até hoje por outros expoentes do gênero. Mesmo as editoras não se interessam ou sequer conhecem a existência desses autores. Por muito tempo, Emilia Freitas era uma autora desconhecida do grande público, sendo apreciada mais por estudiosos do mundo acadêmico em edições bem antigas de seus trabalhos. A Rainha do Ignoto pode ser considerado o primeiro romance de fantasia nacional e que tratava de temas que hoje são bem comuns no universo feminino como patriarcalismo e representatividade. Freitas era uma autora muito à frente de seu tempo. No entanto, apenas com a bela edição da Editora Wish os leitores tiveram seu primeiro contato com ela. Hoje temos edições de várias outras editoras graças ao que a Wish fez por ela.
Existe um certo ar de viralatismo e uma falta de cultura literária no brasileiro. Até hoje literatura de gênero, ou sejam fantasia e ficção científica principalmente, são encarados como subgêneros voltados para o público infanto-juvenil. As grandes editoras já mudaram sua visão sobre isso, mas os leitores ainda relutam. Mesmo premiações como o Jabuti apenas recentemente reconheceram a literatura de gênero como parte de sua avaliação dos melhores do ano. Quanto aos autores propriamente ditos, precisamos recuperar nossa memória. O Brasil já passou por várias ondas de produção de materiais de fantasia e ficção científica. Basta pegar um livro como Fantástico Brasileiro, de autoria de Eneias Tavares e Bruno Matangrano para vermos a riqueza da produção nacional. Garanto a vocês que irão descobrir dezenas de autores aos quais vocês nunca ouviram falar e que irão se interessar rapidamente. Não podemos apagar a memória dessas produções que fizeram parte de um contexto e podem nos ajudar a entender o período. Canso de dizer que os temas e problemas apresentados em livros de fantasia e de ficção científica são fruto de dúvidas e angústias do período em que foram produzidas. Por mais que o objetivo das histórias seja uma narrativa leve, como era muitas vezes o estilo "terrir" de Lucchetti, eles possuem preocupações que os autores tinham. Sem mencionar no fato de que é possível compreender como estes autores escreviam, como pensavam suas histórias, como construíam seus personagens. Isso além do fator diversão.
Considero lamentável a maneira como esquecemos nossos autores. Me entristeci bastante quando soube da situação pela qual Lucchetti estava passando nos últimos meses. Principalmente pelo fato de ele ser uma pessoa conhecida mais dentro de uma bolha de indivíduos mais afinados com a produção literária nacional. Isso despertou a minha atenção para essa cultura do esquecimento. Gostaria de ter mais esperanças de que alguma editora média ou grande abraçasse a obra de Lucchetti, mesmo que fosse para publicar algumas de suas melhores histórias selecionadas ou algo do gênero. Mas, o Brasil se esquece com facilidade demais.
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