Os obstáculos e as crônicas de minas gamedevs
- Paulo Vinicius
- 29 de ago. de 2020
- 5 min de leitura
Nesta HQ com roteiros de Flávia Gasi e arte de Kaol Porfírio, vamos conhecer histórias reais de garotas que buscam seu espaço dentro de uma indústria complicada como é a de desenvolvimento de jogos. Apesar de ser voltada para essa indústria, são histórias que acontecem em todo lugar.

Sinopse:
Crônicas de Minas Gamedevs nasceu de relatos reais, de minas que realmente desenvolvem games no Brasil. Algumas das páginas do quadrinho foram desenvolvidas a partir de um tweet, ou uma frase. Algumas, a partir de um papo (e uma futucada nas mídias sociais). De histórias de esperança a de vingança, passando pelo medo e pela dúvida, Crônicas de Minas Gamedevs fala sobre a experiência de sete mulheres, é um olhar para o mercado nacional de games que não passa pelo review, pela prévia, ou pelo detonado. É sobre as mulheres que compõem esse enredo, e sobre como elas se sentem ao existirem em uma indústria que nem sempre aprecia sua presença.
A roteirista, Flávia Gasi, é doutora e mestre pela PUC-SP no programa de Comunicação e Semiótica. Autora do livro Videogames e Mitologia. Atualmente, é CEO da Forja, que trabalha com desenvolvimento de mídias e audiovisual no mercado geek; sócia do blog Garotas Geeks; e colunista no site UOL TAB, com enfoque em comportamento e mitologia. Com quase vinte anos de experiência em jornalismo e comunicação no mercado gamer e de cultura pop, teve passagem por revistas, sites, e canais de televisão. Fundou um grupo de estudos chamado JOI – Jogos e Imaginário, e dá aulas de narrativa.
A ilustradora, Kaol Porfírio, é uma profissional da arte e seu projeto de maior reconhecimento é Fight Like a Girl, no qual ilustra mulheres e garotas da cultura nerd e geek com o objetivo de naturalizar a força das mulheres e promover o empoderamento feminino. Kaol também trabalha como desenvolvedora de jogos e, dentre outros projetos, é co-autora do jogo Exodemon. Além das ilustrações, Kaol foi uma das 6 convidadas do Teatro do Pavor, história em quadrinhos nacional com base no folclore brasileiro.
O universo de desenvolvimento de games é mais complexo do que parece. E muitas vezes ele transparece um pouco dos preconceitos que existem na comunidade nerd, seja ela relacionada a jogos, a quadrinhos ou a outros setores da cultura pop. Já vimos diversos casos de preconceito de gênero que ganharam a imprensa. Alguns dos mais famosos envolvem Chelsea Cain, roteirista da falecida revista da Harpia (Marvel) que teve sua publicação cancelada muito por conta de críticas vindas de nerds conservadores. No universo de games, tivemos o caso em 2019 de mulheres reclamando de tratamento desigual em campeonatos de esports, o que ocasionou uma série de manifestações nas redes sociais. Verdade é que infelizmente ainda temos elementos muito tóxicos habitando a internet e isso reflete aquilo que há de pior no homem. Na HQ Crônicas de Minas Gamedevs, Flávia Gasi nos mostra casos reais de pessoas que sofreram algum tipo de preconceito em sua profissão como desenvolvedoras de games. Embora o foco da Flávia seja nesse universo em particular, conseguir transportar isso para outros meios como os dos quadrinhos não é mera coincidência.

Antes de comentar um pouco sobre algumas histórias desta coletânea de pequenos relatos, ficam aqui os meus elogios à competente arte da Kaol Porfírio que conseguiu ilustrar muito bem os casos trazido pela autora. Para mim, esta HQ fica mais na categoria de livro ilustrado até pelo volume de informações presentes em cada página, mas mesmo assim a Kaol conseguiu criar algumas páginas bem curiosas como a imitando uma tela do Pac Man ou mais tarde emulando uma imagem do RPG Maker. Adorei mesmo e queria ver realmente uma HQ da artista. Sério... eu compraria numa boa. O roteiro da Flávia também está ótimo e ela consegue ser clara a respeito de todos os casos. Entendi todas as mensagens que ela queria passar e em uma HQ como essa, passar de forma eficiente e clara a mensagem é fundamental para o sucesso da mesma.
Dito isso vou comentar sobre alguns casos que mais me chamaram a atenção. O primeiro caso, da Ami, é um dos mais comuns que a gente vê nos dias de hoje. Infelizmente esse é um universo dominado por homens. Hoje aumentou bastante a quantidade de mulheres que são desenvolvedoras de games, mas nas grandes empresas ainda vemos um domínio grande de desenvolvedores do sexo masculino. Então não é estranho uma mulher se sentir sozinha nesse tipo de espaço. Parece que falamos todo o tempo: "Ah, fulana é pioneira na empresa ciclana de tal". Acho que essa frase já cansou para mim assim como para várias mulheres. Ninguém que ser taxada como pioneira ou como alguém que tem potencial para no futuro abrir mais portas. Elas querem as portas abertas hoje. Não são mais pioneiras. É possível que muitas delas possuam mais talento ou uma visão diferenciada do que outros desenvolvedores homens que estão por aí hoje. Aliás, precisamos parar com essa distinção tola de gênero ou de opção sexual e abrir espaço para pessoas talentosas, sejam homens, mulheres, trans, ou que cargas o valham. A Flávia consegue mostrar bem em poucas palavras, a solidão da Ami nesse papel.
Como alguém que curte jogos divertidos, não pude deixar de não ficar indignado com a história da Tainá. Em sua história, ela não é aceita por uma empresa porque gosta de fazer games em uma plataforma mais simples como o RPG Maker. Que seja a plataforma que for, não existem apenas games triple-A. Undertale e Cuphead estão aí para provar que não é preciso empregar gráficos de última geração para que um game faça sucesso. Basta que ele seja divertido e entretenha o jogador por horas a fio. Eu jogo Megaman 1 até hoje e é uma das coisas que mais me divertem. Isso entre outros RPGs clássicos como Breath of Fire, Tales of Phantasia ou Star Ocean. Quando eu era menor e RPG Maker era uma novidade, eu e o meu amigo tentamos fazer um game nessa plataforma. Claro que a falta de talento me impediu de fazer qualquer coisa minimamente jogável.

Por último eu gostaria de comentar a história da Raquel. É uma história que me chama a atenção principalmente porque sou casado com uma mulher negra. E sei o quanto a minha esposa precisa provar em triplo que ela é uma mulher talentosa todos os dias. Mulheres negras passam por um duplo preconceito: por serem mulheres e por serem negras. Isso é mais comum do que parece. O Brasil é um país altamente preconceituoso. Parece contraditório se colocarmos na ponta do lápis o quanto somos um paí miscigenado. Contudo, isso transparece todos os dias, seja na forma como alguém olha desconfiado na rua, uma vendedora de sapatos cola na pessoa com medo de que ela possa vir a roubar algo, ou alguém te trata com indiferença quando um minuto antes estava tratando um homem branco com toda a atenção. A Kaol Porfírio conseguiu representar bem as expressões faciais da personagem, colocando a angústia, a tristeza e a aceitação no rosto de Raquel. É uma luta árdua que consome as energias de uma pessoa diariamente.
Adorei a iniciativa da Flávia Gasi e gostaria de comentar por horas e horas a fio sobre os temas que ela colocou na HQ, mas preferi me focar em apresentá-la um pouco aos leitores para que vocês possam se incentivar a comprar. Muito mais do que o bom roteiro da Flávia ou a arte competente da Kaol, é o tema que precisa ser discutido mais abertamente nos meios que frequentamos. Precisamos lidar com o elefante na sala. E precisamos ser mais conscientes acerca de nossos atos e falas.

Ficha Técnica:
Nome: Crônicas de Minas Gamedevs
Autora: Flávia Gasi
Artista: Kaol Porfírio
Editora: Jambô
Gênero: Não-Ficção
Número de Páginas: 64
Ano de Publicação: 2019
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