Vamos falar um pouco sobre o livro O Ódio que Você Semeia e discutir como o preconceito afeta o nosso cotidiano. Venham conhecer um pouco da história de Starr e Khalid.
Possivelmente eu não sou a melhor pessoa para discutir sobre esse tema. E vou explicar mais tarde o motivo. Mas, após a leitura do livro O Ódio que Você Semeia, da autora Angie Thomas, eu não poderia deixar de escrever alguma coisa sobre a experiência de leitura e o debate que aconteceu na minha escola. Isso porque toda a narrativa é muito pertinente com o período em que vivemos e o quanto temos visto semanalmente denúncias de abusos policiais, assédios morais, violências psicológicas ou físicas originadas do preconceito étnico. Incomum hoje é não haver um caso desses em uma semana. E isso é algo preocupante em nossa sociedade e o quanto a gente naturaliza determinadas falas.
Quando vemos casos de preconceito, ficamos estarrecidos porque não acreditamos que um país tão miscigenada como o nosso possa ter situações como essa. Infelizmente o preconceito pode se manifestar de inúmeras formas e tamanhos, seja com situações sutis até momentos de extrema violência. Um dos casos mais recentes disso foi de um segurança que acabou tendo o seu carro metralhado durante uma blitz do exército em Deodoro. A alegação é a de que o homem foi confundido com outro bandido que estava sendo perseguido na região. Outro caso foi a de um menino estrangulado por seguranças de um supermercado. O menino acompanhava a mãe e quando ele foi pedir ajuda por uma situação dentro do local, ele acabou sendo detido de forma agressiva pelos seguranças. Esses são apenas alguns casos dentre muitos que acontecem no Brasil.
Mas, o que isso tem a ver com o livro de Angie Thomas, já que ele se passa nos EUA? Tudo. Preconceito não tem nacionalidade, não tem CEP, não tem hora ou local. Isso eu aprendi ao conviver com a minha esposa, uma mulher negra, por lugares ditos "civilizados" e muitas vezes encarar situações constrangedoras. Me sinto mal em alguns lugares pela minha esposa que precisa vivenciar isso. Na narrativa de Angie Thomas, somos colocados ao lado de Starr, uma jovem que mora em um bairro pobre e violento, cujos pais a colocaram em uma escola voltada para a classe média e afastado do seu lugar de origem de forma a dar uma oportunidade melhor para sua filha. Starr acompanha sua amiga Kenya a uma festa em seu bairro onde Kenya reclama do fato de sua amiga só se envolver com amigos e amigas brancos. Mesmo negando, Starr reconhece que existe esse problema interno que ela ainda não resolveu consigo mesmo. Durante a festa, a protagonista reencontra seu amigo de infância, Khalid, que ela tem uma quedinha (mas, não admite). Após uma conversa no qual os dois retomam momentos de amizade perdidos, ocorre uma confusão com briga e tiroteio na festa, obrigando os amigos a saírem do local e voltarem para casa. No meio do caminho, eles são abordados por uma blitz policial. Logo de cara percebemos o quanto o policial realiza uma abordagem beligerante e não dá oportunidade para o rapaz explicar o que estava acontecendo de forma clara. Em um determinado momento, o policial vai checar os documentos do rapaz, e ele retorna ao carro para ficar ao lado de sua amiga. Quando Khalid vai abrir a porta, o policial entende como uma ação ameaçadora e dá várias tiros nas costas do rapaz. Starr fica chocada e sai para tentar ajudar seu amigo e o coloca no colo. O policial também entende a atitude de Starr como ameaçadora, e aponta a arma para o rosto da personagem. A história gira em torno das consequências disso.
É totalmente possível compreender a estressante vida vivida por policiais. Eu tenho um amigo que é da Polícia Militar, um cara absolutamente pacífico e inteligente. Mas, faço ideia da violenta rotina diária pela qual ele passa. Vendo tantas coisas diariamente, a gente acaba formando mecanismos de autodefesa. Passamos a avaliar com outros olhos determinadas atitudes das pessoas: movimentos das mãos, gestos, tiques. Tudo pode levar a um confronto a qualquer momento e o policial precisa estar preparado para avaliar a situação e tomar a atitude correta. Mas, o problema é quando esse olhar observador se mescla a pensamentos e mal entendidos vindos de posições do mesmo. Estou aqui falando de policiais, mas isso pode ser aplicado a qualquer pessoa. É difícil julgar uma reação frente a um momento de tensão. Porém, por mais que a gente tente contemporizar, a ação do policial na narrativa de Thomas foi exagerada. Não há qualquer justificativa.
E isso reforça a questão do preconceito. Quantos de nós já não ficamos com medo de andar à noite em uma rua vazia e, de repente, quando passa um homem negro vindo na direção contrária, automaticamente acreditamos se tratar de um bandido? É automático. E é errado. Como eu posso fazer essa presunção? Quais argumentos me levam a pensar nisso? Normalmente vai somente da forma como ele está vestido ou da cor de sua pele. E eu estou usando apenas o mais básico dos raciocínios. É possível expandi-lo para outras situações como seleção de emprego, atendimento em uma loja. A gente assume imediatamente que o homem (ou mulher) negro não tem dinheiro para comprar uma roupa mais cara. Essa forma sutil de pensar compõe todo um conjunto de pré-julgamentos que fazemos.
Eu acho legal como a Angie Thomas parte para situações sutis para demonstrar o quanto somos preconceituosos sem saber. Uma das principais maneiras que ela faz isso é na forma da personagem Hailey, a melhor amiga de Starr. Mesmo tendo vivido uma tragédia em sua vida, Hailey mantém a sua forma de pensar. Durante suas conversas, frequentemente ouvíamos um comentário torto ou fora de foco ou uma brincadeira sem graça que tinha um cunho étnico. Não estou dizendo que devemos ser politicamente corretos todos os momentos de nossa vida, mas o de sermos coerentes e termos bom senso com nossas atitudes. O que te sugere que você deve chamar um amigo negro seu de macaco? Somente sua cor? Por que ele não te chama de macaco? Só por você ser branco? Há um limite entre a brincadeira e a ofensa. E a pessoa pode não responder na hora, mas é algo que pode ficar guardado em seu íntimo. Como o que acontece com Maya, a amiga oriental de Starr. Ela simplesmente esperava alguém que a defendesse da brincadeira de Hailey, mas isso não aconteceu. Foi algo que ela acabou guardando e internalizando para si.
Muito cuidado também com aquele discurso de politicamente correto o tempo todo. A questão não é se é ou não politicamente correto, mas se é ofensivo. Estamos agora na moda de criticar o politicamente correto e imaginar que devemos soltar tudo o que temos represado. Cuidado! É esse tipo de atitude que leva a tragédias.
Outro ponto muito bom discutido por Angie é o quanto Starr tem vergonha de si mesma. Chegou a tal ponto que ela criou duas personas: uma que é aquela que mora em Garden Heights, seu bairro de origem; e outra que estuda na Williamson. Até sua forma de falar e de se expressar muda. É o preconceito de nós mesmos que algumas pessoas possuem, mas tem dificuldade em assumir. Starr sequer mistura seus amigos do bairro com os da escola. Na mente dela, havia o medo de que seu status na escola fosse afetado se as pessoas descobrissem quem ela realmente era. É de um nível de complexidade alto. Durante a narrativa, a protagonista vai precisar mudar sua impressão sobre si mesma e aceitar quem ela é. Tem um momento da narrativa onde ela nega conhecer uma certa pessoa que bate aquela dor no coração.
Enfim, O Ódio que Você Semeia é repleto de boas discussões que são muito pertinentes nos dias de hoje. Nos faz perceber o quanto discutir sobre negritude e preconceito são assuntos mais complicados do que parecem em um primeiro momento. E, mais do que isso, nos faz refletir sobre as nossas ações nos grupos sociais que participamos. Fica aqui o meu convite a todos para darem uma oportunidade para essa obra que é deliciosa de ler e polêmica em algumas de suas afirmações. Mas, certamente vai fazer você pensar.
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