Em Ensaio sobre a Cegueira, José Saramago nos mostra uma humanidade passando por uma terrível epidemia de cegueira. Isso leva toda a sociedade ao seu lado mais obscuro onde vemos uma mulher, a única que enxerga, buscando entender o que está acontecendo e sobreviver com sua sanidade intacta. Mas, o que isso fala sobre nós? Podemos relacionar o romance aos dias de hoje?
Recentemente reli Ensaio sobre a Cegueira, obra seminal do grande José Saramago. Recebi a nova edição da Companhia das Letras e me pus a pensar nos rumos e descaminhos que a humanidade tem tomado nos últimos anos. E a obra parece que sempre permanece atual com sua mensagem sendo ressignificada à medida em que olhamos para dentro de cada um de nós. Em uma narrativa que ora parece por demais pessimista, ora esperançosa, Saramago repensa o que é ser capaz de viver em sociedade, de obter a harmonia social necessária para despertar a solidariedade do próximo. Como a própria epígrafe denuncia, nós olhamos mas não vemos. Várias situações do cotidiano no qual um simples prestar atenção poderia ser a diferença entre a vida e a morte. Nesta matéria pretendo escrever alguns parágrafos jogando algumas reflexões para o alto e vendo aonde elas vão parar. Me acompanhem nessa jornada.
Antes de passar para a matéria em si queria dedicar algumas linhas para falar da edição da Companhia das Letras. Esta é uma edição especial, em capa dura, contando com uma fortuna crítica ao final. A edição está bacana com uma fonte agradável aos olhos e isso é bastante necessário para ler Saramago com fluidez. Com os seus parágrafos colossais, uma fonte mais apertada poderia fazer o leitor se perder com facilidade. O espaçamento também é muito bom o que também contribui. A edição conta também com papel pólen, bem duradouro para alguém que busca fazer uma coleção do autor. Ao final contamos com alguns trechos do diário de Saramago que trata diretamente da criação da obra. Temos também três textos críticos, sendo um deles de uma das primeiras leitoras da obra antes de ela ser lançada em 1995. O outro é do crítico Marco Lucchesi reverberando a visão brasileira sobre o que autor escreveu. O último texto é do jornal Folha de São Paulo e além de contar mais sobre a vida do autor que estava para receber o Prêmio Nobel de Literatura, nos faz pensar sobre alguns temas citados na obra, mais precisamente sobre uma humanidade em decadência às vésperas da virada do milênio. Três visões bastante valiosas e que podem complementar a experiência de leitura. Só não recomendo ler antes de terminar o livro porque entrega alguns detalhes explorados pelo autor.
A história se centra na ideia da cegueira e somos conduzidos, literalmente, por uma protagonista que não é a narradora. Aqueles que são infectados pelo mal branco ficam cegos, e, ao invés de enxergar um mundo de trevas como acontece com quem fecha os olhos, passam a enxergar tudo branco. Vivemos em um mundo hoje em que realmente parecemos cegos. Cegos não no sentido da visão em si, mas acerca do que acontece ao nosso redor. Partindo de um exemplo micro, todos os dias vemos pessoas em situação de rua. Pessoas que, por algum motivo perderam suas casas, seja por não terem um trabalho, por se renderem a vícios ou diversos outros problemas. As histórias de vida que levaram estas pessoas à condição de rua são as mais diversas e tristes. Quantas vezes já paramos para dar um minuto de atenção a elas? Eu mesmo parei poucas vezes. Temos receio por nossa segurança, por nossos materiais, por nossos parentes e amados, imaginando que algum tipo de violência possa acontecer a eles. Só que sequer refletimos se essas pessoas são capazes disso. Apenas deduzimos algo com base em uma impressão externa e primeira. No Brasil, o padre Júlio Lancelotti é uma das pessoas mais engajadas na luta para ajudar a população de rua. Estender uma mão, oferecer palavras de alento, e até oferecer um caminho para se recuperarem e terem uma vida digna. Casos de aporofobia, que é o medo da população de rua que leva a casos comuns de violências contra essas pessoas, se tornaram comuns de alguns anos para cá. Algo que sempre aconteceu, mas que se tornou uma tendência em grupos ligados à ideologia de extrema-direita. Só que isso também pode ser observado em outros grupos sociais que seriam mais abertos. Oras, faço aqui minha autocrítica porque toda vez que observo uma das ações do padre Júlio, sinto que estou cego. Cego àqueles que estão ao meu redor.
Amar ao próximo não é uma mensagem que é um privilégio de alguma religião específica. É uma frase de vida. Quando dizemos de amar o outro nos referimos ao respeito, ao afeto e não a algo carnal. Em Ensaio sobre a Cegueira temos várias imagens fortes de como o ser humano realmente parece estar cego. Do ladrão no começo do livro que se aproveita da impotência do próximo para realizar seu roubo, ao militar em posição de poder que vê com nojo aqueles que estão infectados, mas antes eram apenas pessoas comuns. Vários são os momentos em que não vemos, apenas olhamos.
Essa cegueira branca é provocada pelo modelo econômico-social no qual vivemos. O capitalismo estimula o individualismo. Na sua obra A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, Max Weber explica como o sistema parte de uma visão salvífica para construir uma necessidade de realizar ações no mundo terreno. Weber faz associações que hoje estão defasadas devido à própria evolução do capitalismo, mas o cerne da questão permanece. "Eu preciso ser salvo." "Preciso justificar minhas ações." Salvar-se é um ato individual. Se antes havia uma percepção do coletivo, agora o homem precisa alcançar a riqueza, o status. É o conceito americano do self-made man.
Podemos avançar na discussão sobre o mal branco a partir dos horrores que a protagonista passa no manicômio ao lado de seu marido. Quando confrontados com uma situação onde o governo não mais ofereceria ajuda e todos deveriam se ajudar para escapar daquela situação, a opção feita foi por concentrar os recursos e limitar o acesso. Criar novas estruturas de poder e de exploração. A solidariedade coletiva desaparece em prol do bem de poucos. O leitor vai acompanhando o quanto essa situação vai progredindo exponencialmente. O que começa com alguém pegando mais comida do que a sua parte se transforma em um circo de horrores com roubos, estupros e tudo o mais no meio. Transportando isso para o mundo real vemos o quanto os micro-poderes aparecem nos lugares em que menos esperamos. Se faz necessário encontrar novas maneiras de exploração, de buscar individualidades dentro do coletivo. Como é o líder do grupo dominante no manicômio. A protagonista nunca quis liderar; seu objetivo é usar sua habilidade como uma forma de potencializar o grupo.
A cegueira civilizacional está em uma sociedade que não entende que vive um paradoxo: vive em um mundo pós-moderno interligado em um pensamento iluminista. Estamos globalizados, acessamos informações em poucos segundos. Mesmo assim parece que estamos mais isolados do que nunca. Não somos capazes sequer de enxergar aqueles que estão ao nosso lado. Milhares de pessoas sofrem com depressão e ansiedade todos os dias. Um momento de atenção e carinho seria um alívio para superar uma situação difícil. Nesse sentido parece que estamos mais cegos do que os personagens do romance de Saramago. Ao refletir sobre esse tema fico pensando nas dúzias de pessoas com o mal branco que adentram na instituição e se sentem completamente perdidos. Não há palavras de conforto a eles, apenas um lugar ao qual eles não sabem sequer dimensionar. As pessoas que ali habitam caem em um poço de imundície e sujeira. O espaço tomado por fluidos corpóreos, os corpos largados ao chão representam o próprio estado de espírito dos mesmos. Os pudores ficaram para trás já que ninguém pode ver. Ou pelo menos essa é a desculpa apresentada.
Mas nem tudo é pessimismo. Muito pelo contrário, Saramago nos deixa uma mensagem de esperança. Aquele grupo guiado pela mulher do médico representa a humanidade. Pessoas das mais diferentes origens, de diversos grupos sociais e situações de vida que são colocadas juntas. Possuem suas visões distintas que precisam ser superadas em prol da sobrevivência. Eles chegarão ao ponto mais fundo da decadência para se levantarem como novas pessoas. Deixando de lado suposições e ideias bestas eles passam a amar um ao outro. O amor vem da compaixão, da solidariedade, do companheirismo. Nos momentos finais da obra vemos cenas tocantes como o banho do homem do tapa olho, o retorno para casa do casal com o primeiro cego, o jovem menino estrábico. A chuva que eles precisam atravessar quando saem da instituição é o ponto de transformação no qual eles adquirem um novo ponto de vista sobre sua existência. Por isso eu disse que Saramago não é um pessimista. Como qualquer insight tudo vem do trabalho árduo, como qualquer transformação, tudo vem da transpiração. Alcançar a felicidade exige atravessar um mar de problemas e dificuldades. Somente assim poderemos voltar a realmente ver.
Ficha Técnica:
Nome: Ensaio sobre a Cegueira - Edição Especial
Autor: Jose Saramago
Editora: Companhia das Letras
Gênero: Ficção/Realismo mágico
Número de Páginas: 432
Ano de Publicação: 2022
Link de compra:
*Material recebido em parceria com a Companhia das Letras
Comentarios