Nossa colunista Ana Lúcia Merege se debruça sobre o tema do tão falado "recuo" da fantasia e dá seu olhar sobre a questão. O mercado terá realmente encolhido ou a questão é mais complexa do que parece?
Pessoas Queridas,
Diante da decisão da Editora Leya de não mais publicar as obras de Brandon Sanderson no Brasil, nosso anfitrião (e leitor inconformado) Paulo Vinícius foi a campo, buscando respostas para a seguinte pergunta:
“Você concorda que o gênero de fantasia teve uma retração no Brasil? Que os fãs não justificam um investimento das editoras?”
Editores e escritores foram consultados, e logo será a vez dos blogueiros e booktubers. Eu também fui convidada a escrever. No entanto, além de escritora, sou bibliotecária, atuo um pouco na área da mediação de leitura, se não diretamente, ao menos por meio de textos e cursos para educadores. Não tinha como responder se não usasse esses outros chapéus – e, assim, acabei aproveitando o espaço desta coluna para fazer algumas considerações.
Antes de falar em retração do mercado, é preciso, antes de mais nada, lembrar que os brasileiros leem muito pouco. Nossa média é de apenas 4 livros por ano, cerca de cinco vezes menor que a dos leitores franceses, e diminui ainda mais se excluirmos as obras de não-ficção. Não há políticas eficazes para o livro e a leitura; estamos longe de ter bibliotecas em todas as escolas -- onde muitos brasileiros têm seus primeiros, e às vezes únicos, contatos com a literatura -- e a imensa maioria da população não tem o hábito de ler, apesar dos esforços de muitos educadores nesse sentido.
“Poxa, mas eu sempre vejo as livrarias cheias...”
Segundo dados do IBGE, divulgados em 2018, apenas 17,7 % dos municípios brasileiros possuem livrarias. As poucas que existem podem até ficar cheias, mas seus frequentadores correspondem a uma parcela muito pequena da população. Além disso, nem todo mundo que entra compra livros, e alguns compram títulos bem específicos, tanto nas livrarias físicas quanto nas online. Claro que há quem leia muito, quem leia de tudo, mas os best-sellers de qualquer área são quase sempre as obras alavancadas pela mídia: livros escritos e/ou indicados por gente famosa, livros no topo da lista dos mais vendidos, livros sobre os quais foi feita uma série de TV. Enfim, muitas pessoas que compram vão pelo “certo”, pelo hype. Diante disso, várias editoras optam por não correr riscos, lançando apenas obras para as quais supõem haver um público consumidor garantido pelo alcance da mídia.
Pois bem: quem vem acompanhando as notícias do mercado editorial deve saber que há tempos ele vem passando por uma retração. Isso reflete não apenas a crise econômica e social em que o Brasil e o mundo se encontram; envolve também mudanças nos hábitos de aquisição de livros e nas formas de leitura. Desde muito antes da pandemia vemos grandes livrarias fecharem, editoras terem prejuízo, autores consagrados assinarem contratos para publicação por demanda e por aí vai. E aí se encontra a resposta à primeira pergunta do Paulo Vinícius: dentro do panorama geral, pode até ser que as vendas de livros de fantasia tenham diminuído ou ficado aquém do esperado, mas isso ocorreu em todos os segmentos, exceto talvez o de auto-ajuda e o das obras religiosas, e excetuados também alguns best-sellers de ficção e de não-ficção. Resta saber se as expectativas da Leya não levaram isso em conta, se foram otimistas demais ou se foram baseadas em mercados diferentes do brasileiro, com outro tipo de leitores e outra dinâmica.
E como a gente fica?
Best-sellers de Literatura Fantástica seguem os mesmos parâmetros que encontramos nos demais segmentos: são indicados por influenciadores, estão ligados a marcas e franquias (e nesses casos as vendas aumentam quando do lançamento de um filme, série ou game) e/ou, ainda, são clássicos publicados em edições atraentes. Bastante gente lê esses livros, campeões de vendas e público; um número bem menor de pessoas lê outras obras de Literatura Fantástica e pode ser considerado de fato um leitor do gênero.
Os livros de Brandon Sanderson não chegaram aqui impulsionados por filmes e outros produtos. Podem ter sido recomendados por booktubers e grupos de leitores, mas mesmo o alcance destes é limitado a quem já tem alguma familiaridade com o gênero fantástico e quer se aventurar em outras obras além das mais famosas. Assim, para lançar autores como Sanderson, levando em conta ainda os custos envolvidos (direitos de publicação e tradução, por exemplo), acredito que seja necessária uma abordagem cautelosa, que procure conhecer melhor as características do público-alvo, faça um marketing mais direcionado e possivelmente tiragens bem menores.
Algumas editoras pequenas e médias apostaram nessas estratégias e vêm se firmando no mercado. Espero que isso aconteça cada vez mais, de forma a não privar os leitores brasileiros de conhecer tantos nomes maravilhosos da Literatura Fantástica – e também, quem sabe, a apostar nos escritores nacionais, que têm muito a oferecer e merecem mais visibilidade.
Da minha parte, reafirmo meu compromisso de trabalhar, em duas frentes, pela formação dos leitores brasileiros. Como bibliotecária, sempre tentei apresentar a Literatura Fantástica a meus colegas, a educadores e a mediadores de leitura, para que percebam as possibilidades do gênero – o preferido dos jovens -- e o incorporem ao seu repertório. Como escritora, venho batalhando, assim como tantos autores, editores e outros profissionais, para ampliar o público leitor de fantasia e para mostrar o trabalho digno, incrível, dos brasileiros. Enfim, somos muitas cigarras, que cantam sem cessar enquanto fazem um trabalho de formiguinha.
E, com todos os percalços, havemos de ficar mais fortes a cada primavera.
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Nem a melhor marca faz o sucesso de um produto se não for bem administrado. É clara a defasagem do mercado editorial em realizar um bom marketing, mesmo com autores e obras consolidadas. A retração é inegável, assim como a incompetência na gestão de muitas editoras outrora consideradas "grandes". Muito bom artigo, cara Ana. Um grande abraço e te vejo na jornada! VR: https://youtu.be/qfre-2ldA9w
Concordo com tudo nesse artigo. Existem vários e vários fatores nessa equação, não dá para dizer que todo um gênero está em retração porque um grande autor não vai mais ser publicado (sem falar que nada impede que outra editora publique-o em breve).
E ainda existe a hipótese do público simplesmente não ter aderido a esse autor específico. Não é porque um autor ou autora é número 1 de vendas no mundo inteiro que vai ser número 1 de vendas em todos os países. Cada lugar sem sua especificidade.
Por exemplo: nos anos 90, a linha de RPG D&D era a mais vendida no mundo, mas no Brasil (e só no Brasil) a linha mais vendida era Vampiro: A Máscara.…
Há tempos venho falando sobre essa questão, aos poucos mais pessoas estão olhando para o problema do mesmo jeito. Não há um mercado de livros no Brasil como se poderia considerar, ainda não. Falta profissionalização dos autores, falta investimento em marketing por parte das editoras e livrarias, falta formação de leitores e estratégias de longo prazo, falta internacionalização da literatura brasileira. Ainda se pensa no mercado de livros de forma "colonial", é preciso ganhar dinheiro rápido, vender os produtos estrangeiros com o maior lucro possível e não investir nada para não ter prejuízo. No Brasil, o mercado de livros e tantos outros mercados, apostou na globalização em sentido unilateral. O que vem de fora é bom e já vem pronto…