Aos 88 anos, Quino se despediu de várias gerações influenciadas por Mafalda, ícone das tirinhas desde os anos 60 na América Latina.
Irreverente, espontânea e dona de um fortíssimo senso crítico, não há quem não conheça a Mafalda. Seja pelas tirinhas lidas durantes as aulas, nos cadernos infantis de jornais e revistas ou até mesmo pelos ensinamentos repassados pelos pais, Mafalda sempre esteve presente na formação das crianças da América Latina, sobretudo na Argentina (seu país de origem) e no Brasil.
Muitos, no entanto, não se atentam aos valores ensinados pelo cartunista e pensador Quino (1932-2020) através das histórias da garotinha e seus amigos e a enorme contribuição da personagem para a construção de um imaginário de possibilidades criativas e discursivas que sustentam, desde princípios muito simples e claros, inúmeros questionamentos a respeito do funcionamento do mundo e da vida em sociedade.
Particularmente, tive o privilégio de crescer lendo muitas das tirinhas publicadas aqui no Brasil, na minha infância dos anos 90. Pude conhecer alguns aspectos da Mafalda que só vieram a se completar em sentido e significado após um contato mais íntimo na graduação, e são essas nuances que eu gostaria de resgatar ao comentar sobre a importância do cartunista argentino durante a minha formação e conscientização enquanto indivíduo integrante de uma sociedade cada vez mais complexa.
Para além do humor típico das tirinhas ou cartoons, existe um diálogo muito sincero e praticamente introspectivo entre a personagem Mafalda e o leitor - especialmente a criança e o jovem - abordando angústias expostas em uma linguagem fácil e acessível, e ao mesmo tempo muito filosóficas, como o a própria existência, o consumismo desenfreado, a política e o modelo capitalista de trabalho e estudo (resultados) sem justa medida ou recompensa. Ao relacionar os problemas da vida com as situações cotidianas que enfrenta, Mafalda analisa as coisas por uma ótica inocente de criança, e justamente por isso é muito observadora. É ao dar voz a esses anseios que a personagem ultrapassa o papel estático e se aloja na própria consciência crítica do jovem leitor.
Um dos pontos mais interessantes na criação de Quino é a ausência de respostas prontas. Mafalda pergunta o tempo todo, mas parece jamais conseguir obter respostas concretas (até porque sabemos que elas não existem). Essas reflexões têm por efeito desdobrarem-se em várias outras perguntas, só aumentando a curiosidade e o repertório crítico de um leitor em formação, ainda sem meios suficientes para adentrar em questões tão profundas, mas já capaz de se apropriar de alguns inconformismos que o guiarão rumo a uma tomada de consciência futura.
Acima de tudo, Mafalda é uma transgressora: ela subverte a escola, o poder familiar, as autoridades e o estilo de vida adulto que não consegue compreender, representando uma figura extremamente marcante e símbolo de resistência e empoderamento feminino e intelectual, e a melhor parte é que ela o faz com a intenção de apontar injustiças e lutar por algo que acredita ser melhor para todos. Olhando para trás, percebo que as tirinhas da Mafalda incutiram em mim, desde muito cedo, noções como a aversão às desigualdades e às figuras autoritárias, uma vez que demonstram-se conceitos vazios de significado.
É interessante, inclusive, perceber que as publicações de Mafalda foram finalizadas em 1973, mas até hoje são lembradas e constantemente atualizadas nos diversos contextos dos acontecimentos contemporâneos. O que isso estaria nos dizendo sobre o mundo?
É preciso reconhecer todo esse alcance e notoriedade que Mafalda tem até hoje para que possamos refletir também sobre a relevância da arte enquanto material de expressão e resistência que consegue sobreviver a décadas de mudanças sociais sob todos os aspectos e ainda se manter tão questionadora quanto da sua criação. Em um momento tão polarizado, onde se sobressaem as individualidades, a caça aos diferentes e os discursos de ódio atormentando a paz e os direitos das minorias, sinto que precisamos recorrer ainda mais à inocente sabedoria de Mafalda e seu criador para que possamos questionar e fugir de um pensamento coletivo de histeria, negação e engano. Que sejamos mais Mafaldas questionando a nós mesmos e a todos.
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