Um diálogo sobre a importância do respeito às emoções do próximo na arte e na literatura.
Os gatilhos emocionais (ou emotional triggers) ainda têm sido alvo de grande dissenso quando se trata de manifestações artísticas. Ultimamente, percebo um enorme retrocesso em questões como empatia, alteridade e respeito à saúde mental e ao bem estar do outro. Existe uma corrente fortíssima e engajada em promover um diálogo aberto e buscar a conscientização de todos para assuntos tão graves. Mas a onda de intolerância e fanatismo que tomou conta do mundo na última década não se contenta em apenas resistir à evolução racional, psicológica e humanitária: ela precisa a todo custo desmoralizar os movimentos em prol da temática humana e social de forma a silenciá-la.
É escandalizante ver autores e artistas repudiando e atacando aqueles que prezam pelo respeito na produção cultural e artística. Esconder-se sob o viés da censura é ainda mais alarmante, posto que se percebe uma noção bastante equivocada do que é, de fato, a censura e um completo desconhecimento sobre limites. Há ainda a acusação do modismo e da militância, outra marca da ignorância sobre o tema. Para falar sobre gatilhos e suas consequências e sobre como trabalhá-los, é preciso saber melhor do que se trata.
O que são gatilhos emocionais?
Antes de mais nada, deixo claro que não sou especialista na área de psicologia e saúde mental, então deixo aqui impressões pessoais a partir de estudos independentes e horas dedicadas à compreensão das problemáticas envolvendo a arte irresponsável.
Por incrível que possa parecer para muitos, essa é uma discussão já bastante antiga que ganhou muita notoriedade com os mais recentes avanços das pesquisas em saúde mental. Desde século 18 percebe-se a influência da arte na mente humana, tendo seu auge após a publicação do romance Os Sofrimentos do Jovem Werther, do célebre autor Goethe, quando uma alarmante onda de suicídios cometidos pelos jovens assolou a Europa. O caso foi tão emblemático que até hoje é conhecido como Efeito Werther, quando um suicídio pode gerar tal comoção que desencadeia uma onda de novos suicídios.
Com a evolução dos estudos humanísticos, verificou-se que uma pessoa já abalada emocionalmente por algum evento trágico pode revisitar seus traumas a partir de um gatilho emocional. Não é difícil, nem para um leigo, perceber que alguns eventos são terrivelmente traumáticos e deixam marcas profundas em um indivíduo: o assédio, a violência doméstica, o abuso sexual, as drogas e o suicídio são alguns deles.
Podemos, então, visualizar o trauma como uma ferida que existe, cicatrizou, mas deixou sequelas, e o gatilho como uma nova pancada ou um novo corte no mesmo local, provocando uma experiência de intensa dor revivendo todo o trauma daquele evento. Agora, é preciso entender também que nem tudo é gatilho e duas pessoas não vivem a dor da mesma forma. O meu trauma não é o seu e a minha reação também não é igual à sua. Então como perceber os limites da arte e da literatura e saber trabalhar temáticas pesadas sem desrespeitar o próximo?
A arte responsável
Reconhecer e respeitar a existência de gatilhos não implica em um cerceamento artístico, e essa é a primeira coisa que precisa ficar clara. Qualquer tema pode ser desenvolvido, por mais doloroso que seja, porque a questão aqui não é o objeto em si, e sim a forma como ele é trabalhado na produção.
Partindo da criatividade e da sensibilidade do autor, isso pode ser conduzido de vários modos, desde um alerta inicial até uma abordagem respeitosa e consciente, seja pelos artifícios da própria escrita, seja pelo direcionamento escolhido ou até mesmo pelo sentido dado ao evento descrito no texto. Uma das técnicas clássicas para se verificar a necessidade de uma cena especialmente problemática, por exemplo, é se perguntar o porquê de ela existir, qual o seu significado, qual é a mensagem que o autor está buscando transmitir ou o que ela representa na trama. Se não houver uma resposta bastante clara, é melhor repensar.
Outra situação é a de muitos autores e leitores sendo contra os alertas de gatilhos contidos em alguns livros ou resenhas. No entanto, todos os filmes e séries apresentam, no início da exibição, os mesmos alertas e não vejo muitas reclamações sobre isso. Eles existem porque um dos passos fundamentais para se superar um gatilho é nomeá-lo, identificá-lo; além disso, quando o leitor tem ciência sobre o conteúdo da obra que está adquirindo, a relação autor-leitor torna-se mais transparente e evita-se um possível choque - e um gatilho - para um leitor desavisado.
O artista responsável precisa exercitar a empatia, precisa se posicionar no lugar do outro. É necessário compreender que os gatilhos sempre existirão, mas é possível conduzi-los de forma construtiva, atenciosa e respeitosa para com o leitor. Escrever por escrever, sem que seja possível extrair sentido ou significado, sem que seja possível somar algo ao leitor, não é arte. Chocar só por chocar não é arte, é apenas irresponsabilidade social e produção egocêntrica.
Gostaria de encerrar lembrando que a literatura é, para muitos, um porto seguro, um lugar de acolhimento, descontração e enriquecimento emocional e pessoal, e isso não tem nenhuma relação com o gênero literário escolhido. É possível ler um bom terror que consiga respeitar o seu leitor, por exemplo, ou um drama dilacerante sobre racismo, ou violência doméstica, ou abuso - ou qualquer outro tema difícil e pesado - que conscientize e forneça abrigo, colo, representatividade ou qualquer que seja a intenção do autor. A arte responsável valoriza o leitor, possibilita transparência e evidencia o respeito à saúde mental do próximo.
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