As ficções são contadas através de palavras, mas e quando elas vão além desta função? Trago três livros cujos autores extrapolaram a capacidade da escrita para entregar uma experiência única de leitura.
Palavras são o recurso essencial do livro. Enquanto uma imagem vale por mil palavras, bons escritores conseguem formar tal imagem com cinquenta, muitas vezes até menos. Longe das palavras literalmente desenharem a imagem ao leitor, elas só o situaram ali. Pode ainda ir além da imagem, já que os romances modernos trouxeram questões essenciais pertinentes à consciência do personagem e acrescentaram às cenas descritas nos parágrafos. Enquanto as mídias visuais limitam-se ao ato de mostrar ao espectador, os livros conseguem transparecer a intimidade dos personagens sem precisar expô-la aos demais personagens. E, olhe só, a narrativa escrita pode ir ainda mais além, como os livros comentados ao longo desta matéria que demonstram entregar experiências distintas na leitura, cujos autores ultrapassam a limitação dos livros em apenas contar boas histórias.
Quero Dançar Até as Vacas Voltarem ao Pasto
Este livro do Marcelo Ferlin publicado pela editora Draco traz personagens mundanos e imorais numa escrita excepcional. Deixo o significado de “excepcional” entre de ótima qualidade ou insólito a critério de cada leitor a explorar as várias composições de palavras do livro. Estas, ora em cenas breves, em passagem só de diálogos, transcrição de diário, ou mesmo de poema. O autor sequer termina alguns parágrafos, deixando o restante para a dedução do leitor.
A leitura entrega casos de incesto, relacionamento abusivo, automutilação, perspectivas pessimistas, adultos sem pudor, adolescentes conscientes da vida adulta e as transições superficiais da moda expostas em um poema de título homônimo ao do livro, entre outras coisas. Nada está amarrado pela trama, o que desencoraja leitores acostumados às formas comuns de contar a história. Quero Dançar Até as Vacas Voltarem ao Pasto entrega experiências em vez de histórias. Uma mesma cena provoca sentimentos incompatíveis, e experimentá-los é o motivo de tornar esta leitura interessante. O autor elabora narrativas inacreditáveis sobre situações comuns graças à dedicação em trabalhar na forma escrita, livre da limitação/obrigação de contar uma cena convencional ao leitor.
“Esfregou as mãos no tapete. Queria café, queria torradas e um pote de geleia. Do banheiro vinha a brisa de sabão em pó. O uísque, vinha do banheiro, não era dela. Não podia beber destilados mais. E alguém havia vomitado. Se as calcinhas estiverem secas, poderia sair.”
Marcelo extrapola a escrita de forma extremista, misturando gêneros e estilos, abrindo mão de traçar o enredo e lançando cenas sem início e nenhuma preocupação em dar fim. Seu livro consiste no cotidiano narrado de forma grotesca, sem influenciar na história, ao contrário de Pedro Páramo.
Pedro Páramo
A única novela publicada de Juan Rulfo conquistou a literatura mundial, sendo um dos ― senão o ― melhores representantes da literatura mexicana. Inspirou grandes mestres da literatura depois dele, entre eles Gabriel García Marquez. Este livro é capaz de perpetuar reflexões de conteúdo além da extensão das cem páginas da obra original, graças aos significados e provocações ao leitor por meio da forma narrativa.
O livro começa pelo Juan Preciado, o narrador da história a princípio, a caminho de Comala, povoado onde vive o pai Pedro Páramo. Vai até lá por atender ao último pedido da mãe. A apresentação da história nas primeiras palavras é fácil de ser compreendida, já nas seguintes... Juan Preciado encontra o povoado fantasma, onde os mortos vivem, ou algo assim, pois a partir desta situação a escrita deixa de esclarecer, sendo que nem os próprios moradores sabem quem está vivo ou morto ali, e todos vivem conforme a narrativa avança adiante ou abordando o passado de Pedro Páramo, contando a sua história junto a de toda a Comala.
“— Foi você que disse tudo isso, Dorotea?
— Quem, eu? Adormeci um pouco. Continuam assustando você?
— Ouvi alguém falando. Uma voz de mulher. Achei que era você.
— Voz de mulher? Achou que era eu? Deve ser a que fala sozinha. A da sepultura grande.
Dona Susanita. Está enterrada aqui, ao nosso lado. A umidade deve ter chegado até ela, que
está se revirando no meio do sono.”
Falei de Preciado ser o narrador a princípio, pois a narrativa alterna conforme Juan prossegue na exploração de Comala. A descrição muda de perspectiva, muda de voz ― motivo do título da novela a princípio ser Os Murmúrios ―, mesclando com a de Juan Preciado até ele mesmo se misturar ao povo de Comala. E nada disso é contado ao leitor em frases objetivas, cabe a ele inferir enquanto lê as falas espontâneas surgindo nos parágrafos.
Pedro Páramo representa a literatura mexicana não somente pelo reconhecimento após a publicação, pois todo o trabalho literário deste livro representa a cultura local. Os sussurros entre mortos e vivos vêm da cultura mexicana quanto aos finados. Comala é exemplo dos vários povoados remotos existentes no México onde a lei se recusa a alcançar, possibilitando o domínio de uma pessoa a governar o lugar sem escrúpulos, impondo a violência em troca de favorecer apenas a si, até a população reagir e gerar mais violência. Pedro Páramo representa, por meio do personagem, os muitos chefes de povoados existentes no México, na época quando o livro foi escrito; e tendo a própria história contada ao filho Juan e ao leitor pelos mortos a murmurar.
Lovestar
Andri Snaer Magnason comparou os livros com drinques, as ideias do primeiro funcionam igual ao álcool do segundo. Por fazer tal analogia, já podemos esperar qual tipo de efeito sua escrita pode causar no leitor. Por segurança, evite ler Lovestar antes de dirigir.
Apesar do aviso, a escrita de Magnason é a mais comum dentre os livros citados aqui, ou melhor dizer, menos extravagante. Sem misturar estilos narrativos, contam cenas do início ao fim e os capítulos mantêm a voz narrativa. Na maior parte do livro são as ideias tecnológicas do enredo a apelarem para o absurdo, sendo a escrita apenas uma consequência das ideias ousadas do autor. Então o enredo progride, desenvolve problemas sobre os recursos da tecnologia inusitada capaz de conectar humanos sem precisar de dispositivos, nem sequer fios. Evolui esses recursos, expandem a capacidade, demonstra o quanto o absurdo é possível neste romance, e quase no fim do livro, o enredo cede espaço à escrita criativa ser solta inteiramente em um parágrafo longo com uma insana alegoria. Deixo a seguir apenas uma amostra da loucura:
“Suas duas línguas se retorceriam como mangueira de incêndio descontroladas e seus corações bombeariam endorfina pura, orgasmo e felicidade por seus corpos até a saciedade e, nesse ponto, tentáculos bocais disparariam até a cozinha e esvaziariam a geladeira, sugariam latas e jarras para ganhar mais energia e produzir mais endorfina [...]”
Numa das resenhas internacionais há o comentário de um colega escritor ― não identificado na resenha ―, ele recusa a levar a escrita de Andri a sério, considerando Lovestar em si uma piada. Bom, esta piada foi digna de prêmios literários na Islândia ― onde o autor mora ― e na França, também foi finalista do Philip K. Dick Award. Assim como os livros anteriores, Lovestar de fato pode desagradar grupos de leitores acostumados a histórias de trama objetiva, cuja escrita é a ferramenta a conduzir cenas em sequência até chegar ao desfecho. Virar as páginas desses livros com a mente aberta recompensa o leitor pela experiência extraordinária proporcionada a partir de meras palavras, sem precisar gastar fortunas ao enquadrar o melhor visual do filme, nem assim a imagem passaria a mesma sensação. A escrita inusitada, quando bem desenvolvida, entrega algo além de curiosidade. Afirmo por experiência própria, li essas três histórias narradas de forma estranha e nenhuma me fez enjoar da outra, todas conseguiram me surpreender à sua maneira.
Referências:
Minimalismo, eu? (Ensaio de Marcelo Ferlin): https://medium.com/@MarceloFerlin/minimalismo-eu-7573aa0bedec
La estructura de Pedro Páramo (ensaio de Luis Leal publicado na Universidade de Illinois): https://docs.google.com/viewerng/viewer?url=https://revistas-filologicas.unam.mx/anuario-letras/index.php/al/article/viewFile/1169/1166
'Ideias em um livro são como álcool em um drinque', diz escritor: https://www.terra.com.br/diversao/ideias-em-um-livro-sao-como-alcool-em-um-drinque-diz-escritor,c92a160dd7560a8e0c8748b6084ddd1eoxbslj9w.html
Struck by Lovestar: https://www.icelandreview.com/reviews/struck-lovestar/
Livros comentados:
Ficha Técnica:
Nome: Quero Dançar Até as Vacas Voltarem do Pasto
Autor: Marcelo Ferlin Assami
Editora: Draco
Gênero: Ficção Experimental
Número de Páginas: 196
Ano de Publicação: 2012
Link de compra:
*Material enviado em parceria com a Editora Draco
Sinopse: Victoria tem um diário e deixou de ser adolescente para se tornar algo que nem nome tem. Marcos não sabe se ama a família de verdade ou se é apenas paixão. Luciana prefere o padrasto ao pai. Mara adolescente quer se livrar dos irmãos, de todos eles. Mara adulta já conseguiu se livrar de dois maridos. Ninguém leva Gil a sério. Mortes, suicídios, casamentos desfeitos, episódios de incesto, abuso, violência familiar e quem sabe combustão espontânea. Quero dançar até as vacas voltarem do Pasto é um romance breve, construído com cenas de aparente despretensão, cujo texto direto, quase nonsense, aos poucos se infiltra na mente do leitor e revela mais do que devia. Através de uma fresta, num relance, um mundo de arestas mais afiadas apresenta sua s figuras desconcertantes e situações de desconforto. É como se os personagens aparecessem para o leitor nos intervalos, quando têm de vestir apressadamente alguma roupa e passar pela sala no caminho para a cozinha. Às vezes eles sussurram. Às vezes gritam.
Ficha Técnica:
Nome: Pedro Páramo
Autor: Juan Rulfo
Editora: Best Bolso
Gênero: Realismo Mágico
Tradutor: Eric Nepomuceno
Número de Páginas: 140
Ano de Publicação: 2009
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Sinopse: O romance mais aclamado da literatura mexicana. Pedro Páramo é o primeiro de dois livros lançados em toda a vida de Juan Rulfo. O enredo, simples, trata da promessa feita por um filho à mãe moribunda, que lhe pede que saia em busca do pai, Pedro Páramo, um malvado lendário e assassino. Juan Preciado, o filho, não encontra pessoas, mas defuntos repletos de memórias, que lhe falam da crueldade implacável do pai. Vergonha é o que Juan sente. Alegoricamente, é o México ferido que grita suas chagas e suas revoluções, por meio de uma aldeia seca e vazia onde apenas os mortos sobreviveram para narrar os horrores da história. O realismo fantástico como hoje se conhece não teria existido sem Pedro Páramo, é dessa fonte que beberam o colombiano Gabriel García Márquez e o peruano Mario Vargas Llosa, que também narram odisséias latino-americanas.
Ficha Técnica:
Nome: Lovestar
Autor: Andri Snaer Magnasson
Editora: Morro Branco
Gênero: Ficção Científica
Tradutor: Fábio Fernanddes
Número de Páginas: 336
Ano de Publicação: 2018
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Sinopse: LoveStar, o enigmático e obsessivo fundador das Corporações LoveStar, desvendou o segredo para transmitir informações em frequências emitidas por pássaros, finalmente libertando a humanidade de dispositivos e cabos, e permitindo que o consumismo, tecnologia e ciência tomem conta de todos os aspectos da vida diária. Agora, homens e mulheres sem fio são pagos para gritar propagandas para pedestres desavisados, enquanto o programa REGRET elimina todas as dúvidas sobre os caminhos não escolhidos. Almas gêmeas são identificadas e unidas através de um sistema altamente tecnológico. E enviar os mortos aos céus em foguetes se torna um símbolo de status e beleza, um show catártico para aqueles deixados para trás. Indridi e Sigrid, dois jovens amantes, têm seu mundo perfeito ameaçado, quando são calculados para outras pessoas e forçados a chegar a extremos para provar seu amor. Sua jornada os coloca em uma rota de colisão com LoveStar, que está em sua própria missão de encontrar o que pode vir a ser a última ideia do mundo.
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