A animação D_Cide Traumerei aparece como uma forma de mostrar a futilidade de uma sociedade que ainda não entendeu o seu lugar no século XXI. Com uma superfície de jovens heróis defendendo pessoas de uma Igreja cruel, a animação discute preconceito, bullying, redes sociais e vários outros assuntos espinhosos.
O século XXI apresentou para a sociedade novos desafios para os quais nos prepararmos. Seja relacionado a relações institucionais com nossos governantes ou com a economia, seja no que diz respeito às situações mais corriqueiras. Determinados comportamentos reprováveis que eram entendidos como normais no passado hoje já não são mais aceitos. Isso abriu alas para que revelássemos um lado sombrio do ser humano, que estava ali o tempo todo, mas nos recusávamos a ver. Preconceitos, violências, atos reprováveis... todas essas atitudes ganharam uma forte luz, o que fez com que conseguíssemos enxergar melhor as sombras. Embora seja um anime bem raso, D_Cide Traumerei coloca uma série desses temas de maneira indiscriminada bem na nossa cara, enquanto apresenta personagens cool e estilosos lutando contra o mal.
Bem, D_Cide Traumerei é mais um desses animes de 2021 que surge no esteio de um game. Curiosamente, a temporada de junho de 2021 nos apresentou vários deles como Scarlet Nexus. A diferença é que se trata de um desses jogos mobile para IoS. É uma produção do studio Sanzigen, mais conhecido por Arslan Senki (A Heróica Lenda de Arslan) e Terra Formars. Já aviso aos meus queridos leitores que é um anime que usa e abusa dos efeitos 3D ao longo dos episódio. E quase sempre não de uma forma positiva. A direção é de Yoshikazu Kon cujo único outro trabalho foi na adaptação da nova versão de Sakura Taisen. Bem, se o diretor é um novato, não podemos dizer o mesmo acerca do roteirista que é o famoso Hiroshi Onogi, responsável por várias franquias Gundam como Zeta e Seed. Agora, o público brasileiro mais velho vai se lembrar de Onogi por conta de Detonator Orguss... siiiiiim, aquele anime do velho US Mangá, programa lendário que passava na Locomotion. Talvez por essa razão o roteiro seja bem melhor do que a animação. Enfim, o anime teve 13 episódios e aparentemente fechou esse arco da história. Como é uma história original, não faço ideia se terá uma continuação ou sequer se tem um público pedindo isso. A nota dele no MyAnime List não é lá essas coisas.
Vamos falar da história e depois volto em algumas análises sobre a animação. A história tem como foco um grupo de pessoas chamadas Knocker-Ups capazes de enxergar distorções na realidade causadas por pessoas que tem contato com um doce chamado Somnium Drops. Esta balinha faz com que seus desejos mais sombrios tomem forma através de um plano dos sonhos chamado Traumerei. Quanto mais forte é o desejo, mais criaturas sombrias chamadas Weirds aparecem para fazer com que estes desejos se tornem realidade... à força. Pode ser uma vingança contra uma pessoa, a destruição de algum ponto da cidade que traz sofrimento ou o desaparecimento de alguém que lhe causa mal. Ao realizar este desejo, os "sonhadores" despertam uma criatura chamada Desaria que reflete estes desejos obscuros. Os Desaria se alimentam de sua energia vital para se manifestar fisicamente no mundo real. Os Knocker-Ups combatem estas criaturas. No começo apenas Jessica e Aruto combatiam os weirds até que o despertar de Ryuhei coloca a dupla em uma outra direção. Shibuya se torna o centro do despertar de vários Desaria e a situação rapidamente muda a partir do momento em que se descobre que os somnium drops estão sendo distribuídos no mercado negro.
O que dizer da animação? Mediana. Bem mediana mesmo. O estúdio abusou do CGI para compensar uma animação ruim o que deu uma levantada no design de personagens. Este segue bastante o design do game e os personagens do Ryuhei, da Rena e da Eri foram criados para o anime em si. Posso estar enganado, mas o game se foca mais na galera da ilha (personagens que vão aparecer depois na trama) e no Aruto e na Jessica. Faz sentido já que o arco do anime envolve diretamente o Ryuhei. As cenas do anime não são de todo ruins, e até acho o design dos monstros criativo. Me fez pensar imediatamente nas criaturas bizarras da série de games Persona. Só que os pontos positivos da animação acabam aí. O estúdio repete demais algumas cenas específicas de ação, um recurso que era comum em animes antigos. Sabe quando você percebe que já viu um determinado quadro da animação em algum lugar antes? Pois é... você já viu. Ele só foi aproveitado em outro episódio. As cenas de luta tem alguns momentos estranhos de animação estática que parecem realmente saídos de um game. Quando um quadro de animação tem um personagem em movimento e os efeitos visuais parados? O visual dos personagens é igual em todos os episódios. Me pergunto se eles colocam as roupas para lavar ou se todo o guarda-roupa deles tem roupas iguais. Gente, entendo que isso é comum em animes shounen, mas eles são personagens que vivem em Shibuya e a série lida diretamente com moda, relações sociais. Fora que o Ryuhei nunca foi chamado a atenção na escola por ir com um colete nas cores de um abacaxi ao invés de usar o uniforme da escola?
Mas, vamos falar de coisa boa que é o roteiro e o motivo pelo qual decide escrever este artigo. A narrativa explora amplamente a região de Shibuya, uma região extremamente importante da cidade de Tokyo onde negócios e entretenimento se mesclam para formar um lugar que representa simbolicamente o século XXI. Ou seja, podemos dizer que esta região é aquilo que melhor define a nossa vida nos dias atuais dos grandes centros urbanos. Todos os lugares são extremamente iluminados, as ruas movimentadas, uma explosão de enormes arranha-céus em toda parte. As pessoas buscam se destacar dentro de uma metrópole em movimento seja com uma roupa descolada, um penteado diferente ou apenas se misturando na multidão. Pessoas de todas as etnias e idades compartilham do mesmo espaço. O incrível é que mesmo em uma região tão densamente habitada como Shibuya, muitas pessoas se sentem sozinhas e abandonadas. Na história, esta é a porta de entrada para os somnium drops, que procuram atender aos desejos mais obscuros destas pessoas. Se formos pensar mais detidamente, a narrativa explora a necessidade das pessoas de pertencer a um determinado grupo social ou apenas encontrar alguém que consiga ajudá-los com os seus problemas. Afinal, mesmo um grito de socorro pode se perder em um lugar onde mesmo buscando a individualidade, a coletividade acaba apagando a tudo e a todos.
Daria para passar vários parágrafos explorando as diversas pessoas exploradas na animação, mas vou me focar nos três principais. Começando pelo Ryuhei, que é o estereótipo do protagonista bobão de anime shounen. Apesar de ele ser um personagem raso per se, tem um background interessante a respeito dele que é melhor explorado nos episódios finais da animação. Vou deixar a história do irmão dele para que o pessoal não reclame de spoilers para focar em um episódio em que o personagem fica todo animado quando recebe uma carta de amor em seu armário. O ego do personagem sobe até a estratosfera, mesmo para o claro ciúme da Rena (apesar de falarem que são só amigos... mas, a gente sabe né). O que o roteiro consegue dar uma virada na gente e se tornar mais interessante do que a velha trama da namorada misteriosa é que a carta foi enviada por um menino. E o personagem fica sem ação no ato. Percebam a cutucada do roteiro: mesmo o protagonista sendo alguém de mente aberta, que possui aquele lado intrinsecamente heróico, ele corre de falar com a pessoa. Quando tenta conversar, causa ainda mais desastres. A postura do Ryuhei diante de uma situação inesperada ao lidar com a homoafetividade não é estranha já que muitos de nós não sabemos como nos comportar adequadamente. O que o personagem faz na animação é errado ao tentar contemporizar e diminuir a resposta dada. Em nenhum momento ele diz simplesmente um não. Por mais que uma rejeição seja dolorida e cause um aperto no coração, a fuga ou a dúvida não são as melhores opções. Dar esperanças aonde ela não existe é ainda pior do que simplesmente ser definitivo.
Temos também o caso da Rena, a amiga de infância do Ryuhei que é super descolada e amiga de todos. Ela é uma espécie de influencer de moda (não fica muito claro além do fato de ela postar fotos, vídeos e reels o tempo todo) que se vê diante de uma falsa amiga que publicar informações falsas a seu respeito. Inicialmente Rena acha que se trata apenas de alguns trolls de internet que estão dando opiniões negativas sobre ela, mas a situação vai tomando outras proporções pouco a pouco. Em um mundo onde tudo é globalizado e as pessoas desejam fazer amigos em toda a parte, as redes sociais servem como uma maneira de diminuir a solidão. Principalmente quando temos pessoas que reagem ao que fazemos, seja curtindo ou dando uma palavra amiga. Mas, as redes sociais também são um imenso tribunal de costumes e as pessoas podem ser realmente cruéis em suas manifestações. Tem um momento em que Rena surge pensando em o quanto ela consegue se sentir tão solitária mesmo estando com uma enorme quantidade de seguidores. Para piorar, sua auto-estima vai parar no chão quando ela descobre que alguém próximo a ela é quem foi a responsável pelas postagens negativas e até pela manipulação de imagens. Tudo por que esta amiga a queria inteiramente para si.
A personagem da Eri tem um problema mais comum do que imaginamos. Ela é uma personagem estudiosa e gentil, mas acabamos percebendo o quanto ela é retraída. Aos poucos descobrimos por que isso acontece: seu pai trabalha na polícia e é uma pessoa extremamente violenta em casa. Uma violência que começa sendo moral, mas vai se transformando em algo físico quando percebe que suas instruções estão sendo questionadas pela esposa e filha. A mãe de Eri é a típica mulher japonesa tradicional, se dedicando à casa e aos filhos e fazendo as vontades do marido. Só que isso nunca é suficiente porque o macho alfa precisa demonstrar a sua dominação dentro do ambiente doméstico. Então os abusos e as palavras tortas se tornam cada vez mais comuns. A filha precisa seguir os passos da mãe e cumprir metas e horários para agradar o pai. Caso contrário, o confinamento é a punição. Vemos a personagem procurando dar gritos de liberdade em vários momentos nos episódios iniciais, mas seus gritos acabam contidos por uma situação angustiante. Quando o grito se torna inevitável, o resultado é uma menina que se torna uma mulher que sabe se expressar e se empoderar. Alguém capaz de adotar um visual chocante porque é dessa forma que ela deseja mostrar quem ela verdadeiramente é. Quando ela toma seu destino para si é que Eri é capaz de mostrar o seu verdadeiro potencial.
Mesmo sendo um anime mediano, D_Cide Traumerei traz boas discussões para os espectadores. Basta a gente ignorar a história que muda de direção no meio do caminho, a animação questionável, a música saída de um elevador que o resto até dá para curtir. E o anime consegue impressionar em suas escolhas em determinados momentos. Não vai ser aquela coisa inesquecível na sua vida, mas vai dar algumas horas de diversão e reflexão.
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