Nesta segunda matéria sobre o livro de Puchner, vamos discutir o que foi a leitura durante a Idade Média e em outros lugares mais distantes. Temos uma japonesa que emprega poemas e enfrenta uma sociedade machista e escreve o primeiro romance longo, as Mil e Uma Noites de Sheherazade e o surgimento da imprensa.
A leitura no Oriente
Já falamos bastante do processo de helenização e de como a leitura serviu para unir diferentes pontos do planeta. Com o surgimento do grego como elemento de colonização durante a Antiguidade, muitos povos acabaram cedendo ora à herança cultural de Alexandre ou ao jugo romano. Isso sem falar no cristianismo e sua postura proselitista no início de sua vida como uma religião. Mas, alguns pontos do Oriente acabaram seguindo um caminho bem diferente como é o caso do Extremo Oriente e do Oriente Médio.
Confúcio foi um mestre muito importante para a formação do que conhecemos como a ética e a honra oriental. Suas lições acabaram chegando a todos os pontos do mundo chinês, sem falar no Japão. A escrita ideográfica chinesa também foi transportada para o Japão, que importou também toda a sabedoria dos escribas. Saber escrever era privilégio de poucos, mas principalmente de homens. Mas, vamos encontrar uma transgressora no Japão. Uma mulher que vai aprender a arte da escrita e trazê-la para um universo mais popular através de seus poemas. O Romance de Genji é até hoje encarado como um dos primeiros romances longos da história da literatura, e através da escrita ora em prosa, ora em verso de Murasaki Shikibu nos permite entender um pouco do fechado mundo japonês. Um mundo de aparências, de mesuras, de honra, mas um mundo violento e traiçoeiro.
Pessoas sem status não poderiam aprender a prestigiosa escrita em ideogramas da China. Pior ainda mulheres. E existia também um outro obstáculo: a quantidade absurda de ideogramas existentes na escrita chinesa. Como se trata de uma escrita onde cada letra representa uma ideia ou um objeto, isso dá à escrita uma quantidade que passa das centenas de ideogramas. Para guardar esse manancial de ideias, não eram todos que conseguiam. Um fator final de dificuldade é o transporte de ideias de uma cultura para outra. Chineses e japoneses possuíam valores e formas de se expressar diferentes uns dos outros. É complicado comparar. Por essa razão, representar as ideias dos japoneses através de ideogramas chineses saía confuso e truncado em várias ocasiões. Através da transgressão de Shikibu a escrita kana (o kata kana) acaba ganhando mais espaço. Uma escrita mais simplificada e representava até uma forma de separar a cultura chinesa da japonesa.
O curioso é que sua escrita apesar de ser de uma mulher, passou a ser lido por muitos na época. Como ela escrevia em poesia (mesclava trechos em verso e em prosa) ela passou a ser encarada como uma escritora séria. Mesmo os seus contemporâneos buscando diminuir sua relevância, O Romance de Genji se tornou popular. Porque falava sobre a nacionalidade japonesa, os problemas japoneses. Não era algo transportado da China. Se hoje conhecemos muito sobre o período Heian (794 - 1185) isto se deve a Shikibu. Sabemos sobre a forma de pensar da sociedade japonesa do período, nos permitindo entender melhor o impacto de determinados acontecimentos históricos.
Depois de escrever O Romance de Genji, Shikibu migrou para a escrita de si. Ela já não conseguia pensar em mais histórias sobre seus personagens e passou a escrever um diário, contando suas experiências e dilemas. Foi graças à sua primeira obra que a autora tornou popular entre mulheres a escrita de pequenos diários de cabeceira. Um dos mais famosos é O Livro do Travesseiro, escrito por Shonago e traduzido para o português pela Editora Liberdade. É clara a inspiração de Shonago por Shikibu. Outras como Shonago se veem presas em uma reclusão que faz da escrita a sua maneira de fugir para outros lugares através de sua escrita.
Mil e Uma Formas de Contar Histórias
Se vamos falar de literatura popular ao longo dos séculos é impossível não falar da famosa contadora de histórias, Sherazade. Um conjunto de histórias que falava aos corações daqueles que habitavam naquela região do mundo. Segundo Puchner, uma literatura que passava pelas mãos dos comerciantes do Grande Bazar, em Bagdá. Mas, assim como Homero, não sabemos quem é o autor das Mil e Uma Noites. Acredita-se ser um conjunto de histórias populares organizada de forma a compor uma literatura em moldura. Funcionaria como um contador de histórias que seria uma espécie de apresentador para as demais presentes na narrativa. Cada vez que uma nova história fosse apresentada, voltaríamos ao narrador que prosseguiria em sua jornada. Ele próprio teria algum tipo de dilema a ser resolvido e através das histórias que estariam sendo contadas, algum desenvolvimento aconteceria.
Com Sherazade, somos instigados a fazer algumas reflexões. O que impulsiona uma história? Quais as conexões feitas entre leitor e narrador? A maneira como a história nos é apresentada nos permite conhecer todo o universo proposto pelo autor. Bagdá é viva na pena do autor de As Mil e Uma Noites; ela respira, transpira, reage. Talvez se dermos um ou dois passos para trás seremos instigados a perceber a própria definição da palavra Imaginação. Segundo Puchner, imaginação nada mais é do que a invenção de mundos com palavras. Claro que ele simplifica muito o termo em si, mas é possível pensarmos no autor como um criador. Responsável por usar sua pena para criar seres vivos, lugares, emoções.
Em As Mil e Uma Noites entendemos que qualquer pessoa pode conter uma história. Seja esta pessoa um carregador, um ladrão, um órfão, um pirata. Do mais simples ao mais elegante, qualquer pessoa é passível de viver uma aventura. Isso fez das histórias de Sherazade tão populares. Elas permitem a identificação do leitor com aquele que está vivendo mil aventuras. Ou seja, algo como o que acontece com Ali Babá poderia acontecer a um leitor se as circunstâncias corretas estivessem presentes. Além disso, é uma narrativa que permite aos leitores fugirem dos dilemas e dos problemas do mundo cotidiano.
A Chegada da Idade Moderna
A Idade Moderna chega com as Grandes Navegações e a descoberta do novo mundo. O contato entre espanhóis e maias e astecas nos coloca a par da existência de povos em outro estágio de desenvolvimento. Civilizações que buscaram caminhos alternativos e descobriram outras respostas para o que os europeus encontraram. Até mesmo as maneiras de preservar sua história são diferentes em relação à escrita alfabética. A escrita maia consistia em sinais que poderiam expressar ideias ou combinações de sons. É algo na vertente da escrita ideográfica chinesa, mas que incorpora outras ideias. Temos vestígios de cartuchos presentes naquilo que sobrou de templos maias e até hoje é muito difícil realizar a tradução destes. Isso porque não temos parâmetro para isto. O que sabemos sobre a cultura mais está presente no Popol Vuh, uma compilação escrita feita durante as perseguições religiosas feitas por Diego de Landa. Este, ao presenciar os sacrifícios humanos feitos pelos maias, taxou-os de hereges e efetuou uma sistemática destruição de sua cultura.
Outros elementos que se assemelham aos europeus está no nível de prestígio fornecido por aqueles que possuíam livros. Como a escrita era algo muito complexo, ela era deixada a cargo de escribas e sacerdotes. Por esse motivo eles não eram muito numerosos. Quando houve a perseguição feita pelos espanhóis, muito se perdeu. O Popol Vuh mesmo não contém todas as informações sobre eles, mas apenas elementos culturais mais críticos. Lacunas existem aos montes, mas poderia ser ainda pior. Os relatos de perseguição são terríveis, com Landa promovendo queima de livros em verdadeiros autos de fé assim como prisões e torturas para que os maias renegassem completamente aquilo que acreditavam antes.
Por outro lado, na Europa, uma revolução acontecia. Gutenberg, alguém interessado em obter lucro através de suas invenções, criou um sistema capaz de realizar a impressão de livros rapidamente. Através de suas placas móveis, seria possível adiantar um processo lento como o de copiar manuscritos. A relação entre Gutenberg e a Igreja rapidamente se torna mais próxima quando a venda de indulgências se torna uma prática comum. O famoso inventor cria um modelo de documento em que aquele que fosse preencher o documento precisa escrever poucas linhas. Modelo esse que permitia a impressão de centenas de indulgências favorecendo os objetivos escusos da Igreja naquele período. Mas, Gutenberg levou isso além: imprimiu a Bíblia, remanejando seu processo para abarcar todo o escopo de um livro enorme. Puchner usa uma expressão muito boa dizendo se tratar de um "escrito sagrado feito por mãos inumanas". Para um perfeccionista como o intelectual cristão Nicolau de Cusa, a impressão permitia reduzir drasticamente os erros na cópia da Bíblia. Era uma de suas maiores reclamações o fato de copistas reproduzirem erroneamente alguns trechos.
Curiosamente, o instrumento que ajudou a Igreja a expandir o alcance de suas indulgências é o que vai levar à sua ruína. Lutero passa a usar um local de impressão próximo a Wittgenstein e suas teses conseguem alcançar um público ainda maior. O monge alemão vai denunciar a corrupção interna que assolava a instituição. Ele busca uma audiência com o papa, mas seus avisos não são ouvidos. É então que lhe ocorre a percepção de que o próprio círculo interno do papa era corrupto. Lutero passa a pregar com frequência em frente à paróquia em Wittgenstein e a distribuir seus panfletos, também impressos com o invento de Gutenberg. O que Puchner comenta nesse trecho é que Lutero foi responsável por entender a importância de manipular a opinião popular. Era preciso trazê-la para si de forma a combater a venda de indulgências. É a escrita polêmica apoiada pela imprensa.
Vemos então o quanto a escrita e a literatura se difundiram pelo mundo. A partir da invenção da imprensa, os livros ganharão o mundo. E isso vai instigar escritores a divulgarem suas histórias, nos entretendo e nos emocionando. Na próxima parte veremos como autores como Cervantes vão fazer seus livros chegarem a cada vez mais leitores.
Livros Citados:
Ficha Técnica:
Nome: O Mundo da Escrita - Como a Literatura Transformou a Civilização
Autor: Martin Puchner
Editora: Companhia das Letras
Gênero: Não Ficção
Tradutor: Pedro Maia Soares
Número de Páginas: 488
Ano de Publicação: 2019
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*Material enviado pela Companhia das Letras
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