Quando a luta se transforma em arte e a arte transforma o mundo.
Homens nunca precisaram escrever sobre o ser homem. Suas guerras, odisseias e conquistas sempre foram ideais natos de virilidade. Às mulheres, as costuras, as crianças e a manutenção do lar. O que é, então, ser mulher, além de utilidades e benefícios à sociedade patriarcal?
Desde os primeiros registros, as mulheres sofrem para conseguir se expressar. Por séculos ocultas por pseudônimos, apenas muito recentemente na história literária elas vêm conseguindo publicar seus livros e contar suas experiências, mostrar ao mundo suas criações e dar voz a tantas narrativas quanto possível, tudo isso com a expertise de gerações que aprenderam sozinhas a lutar pela palavra.
Me peguei com enorme dificuldade para selecionar autoras que me inspiram a fazer este tipo de artigo. A verdade é que, em uma vastidão de autores homens consagrados na literatura mundial, em especial no que diz respeito à fantasia e à ficção científica, despontam apenas algumas mulheres. Nomes como Ursula K. Le Guin, Margaret Atwood, Octavia E. Butler e, recentemente, N. K. Jemisin são razoavelmente respeitados dentro da comunidade por terem notoriedade na literatura - são autoras premiadas, reconhecidas como influenciadoras de toda uma geração de escritores etc. Fatos inegáveis, ainda que questionados por uma parcela conservadora e intolerante dos fãs. Infelizmente, essa realidade não alcança todas as mulheres: a maioria continua desconhecida ou, quando muito, restritas a um público essencialmente feminino.
As mulheres continuam desacreditadas no mercado editorial. Constantemente lembradas apenas pelos romances e pela literatura young adult, por uma literatura considerada inferior e fútil, excessivamente feminina, grandes autoras ainda encontram dificuldade em publicar gêneros como a ficção científica, por exemplo. A indústria cultural tenta insistentemente subjugar suas escritoras a moldes pré-fabricados, buscando novas J. K. Rowlings ou mais uma releitura de O Conto da Aia, fórmulas de sucesso já comprovado. Ainda procuram na literatura feminina o modelo enlatado ditado pelos homens que as antecederam, em uma comparação ridícula e datada a Asimov ou Tolkien como o único padrão aceitável. A verdade, no entanto, é que se cria um conjunto de regras implícitas para desacreditar trabalhos femininos, criando obstáculos muitas vezes intransponíveis.
Partindo dessas reflexões, observamos também que as mulheres representam uma importante parcela do público leitor e sempre foram expostas a narrativas com pouquíssima participação feminina. Essas influências são marcantes quando se observa, ainda hoje, a predileção por protagonistas masculinos mesmo entre autoras aclamadas, a exemplo de Harry Potter, e não Hermione, como o herói da saga.
Foi preciso, então, reinventar e ressignificar a literatura como um espaço de fala, quando sempre representou exclusão para a mulher, e não apenas na literatura fantástica. É aí que entra a descoberta pelo verdadeiro ser mulher, levando a reflexões como papel social, gênero, identidade e representatividade, por exemplo. Voltamos aos questionamentos iniciais: o que é ser mulher para além da filha, da esposa e da mãe? Como escrever sobre o que sequer se consegue expressar, dadas as construções identitárias criadas pelo patriarcado? Em um árduo caminho de autoconhecimento e empoderamento, despontam mulheres que aprenderam a luta que é falar de si mesmas e o poder contido em suas palavras.
"Elas entenderam a força que tinham, todas ao mesmo tempo" - Naomi Alderman, O Poder.
Hoje, inúmeras autoras se lançam escritoras a cada ano, mas esse número ainda é relativamente pequeno e, novamente, restrito. Especificamente na literatura fantástica, acompanhamos o desenvolvimento de várias mulheres decididas a ganhar espaço, como Sarah J. Maas, Leigh Bardugo, Sabaa Tahir e Christelle Dabos, isso só para falar de uma geração mais recente. Autoras fortes, com suas protagonistas fortes, escrevendo sobre aquilo que as encantam. Elas são comumente associadas a uma literatura feita para meninas e mulheres, mas, a bem da verdade, o desconhecimento de seus trabalhos por parte do público leitor masculino revela o preconceito intrínseco para com o ser mulher. No fim das contas, está tudo bem se a fantasia delas sequer se aproxima de Tolkien ou George R. R. Martin: não é isso que elas querem, de qualquer forma.
É tempo de reconhecer a importância do viés feminino na fantasia, na ficção científica, no terror e em todos os gêneros que sempre represaram o potencial de suas escritoras; mais ainda, é tempo de ler mais mulheres, conhecer suas narrativas e expandir a noção estreita que se tem de literatura de gênero, admitindo que a diversidade é o que provoca, instiga e agrega. Sendo uma das formas mais interessantes e gratificantes de aprendizagem, reflexão e conhecimento, o aprisionamento na bolha da leitura confortável não condiz com a verdadeira natureza do ato. É necessário um mundo com mais mulheres protagonistas de suas próprias histórias e mais narrativas diversas sendo contadas e lidas.
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