Será que precisamos nos cobrar tanto?
Vivemos tantas mudanças desde o início da pandemia: saúde, família, educação, empregos, lazer, tudo posto em cheque, correndo riscos até então impensáveis. O isolamento social e a quarentena tiveram uma grande contribuição no aumento da procura por novas formas de entretenimento: alguns aprenderam a cozinhar, outros começaram a praticar dança, artesanato, a seguir vídeos DIY (vídeos de faça-você-mesmo), e, de repente, viu-se um novo interesse pela leitura. Não é nenhuma surpresa que os livros entrem em cena em um momento que exige mais reflexão e que demanda tempo e atenção muitas vezes incompatíveis com uma rotina de trabalho pesada. Para os leitores de longa data, notícias que comprovem o despontar da leitura como um hobby mais valorizado no país são motivos de comemoração, sem dúvidas.
Tudo estaria ótimo, se não fosse por uma questão: como lidamos com nossos hobbies? A nossa sociedade insiste em uma exigência de produtividade surreal, nos afogando diariamente em tarefas extenuantes, estressantes e desumanas, motivo pelo qual os índices de transtornos emocionais e mentais estão cada vez mais altos. Ansiedade, estresse, depressão, burnout, síndrome do pânico, todas potencialmente causadas pela pressão diária e constante pela infame produtividade (não exclusivamente, é claro). Transportando isso para o cenário pandêmico, com uma taxa recorde de desemprego de 14,7% (na data desta publicação), em contextos de home office e de tédio absoluto, nossas energias, antes tão focadas em produzir, produzir e produzir, procuram um novo alvo: o que consumimos como entretenimento.
É aí que entramos em uma espiral vertiginosa de buscar por resultados e produtividade até mesmo em nosso momento de descanso: as séries atrasadas, a lista de livros que só aumenta, aquela quantidade infinita de coisas que sentimos ter que cumprir. Então vem o bloqueio. Já que tratamos o lazer como obrigação, iniciamos um processo inverso do originalmente proposto e vamos nos afastando das coisas que mais gostamos de fazer. Enquanto vemos influencers lendo dez, doze livros por mês, mal conseguimos terminar um, e o fazemos por pressão, culpa, tentando fugir desse sentimento de falha por não atendermos às nossas próprias expectativas.
Agora pensem comigo: que tipo de sociedade doente é essa que consegue reduzir o nosso lazer a uma "to do list", ou no caso dos leitores a uma "to be read" (a famosa TBR)? Somos tão escravos do nosso tempo que, desta forma, não conseguimos nem mais aproveitar o momento e nos divertir, apenas vamos riscando as tarefas cumpridas. Afinal, por que precisamos ler 50 livros em um ano? Claro, é sempre interessante se desafiar, buscar conhecimento e ir atrás do que nos interessa, mas, de verdade, quantas dessas 50 leituras foram realmente importantes para você? Quantas delas você curtiu fazer? Quantas te divertiram ou te proporcionaram bons momentos? Se você não conseguir responder nem com a maioria delas, temos um problema.
O momento nunca foi tão propício para discutirmos saúde mental, autocuidado e amor-próprio. A pandemia escancarou doenças e problemas muito maiores que a própria covid-19, acendendo um alerta para o nosso comportamento autodestrutivo e para as relações que estabelecemos com o outro e com as nossas próprias necessidades. Diante de um cenário tão triste e caótico, com tantas notícias trágicas, seja pela doença ou por suas consequências na política, na economia ou nos nossos planos para o futuro, é preciso que tenhamos a compreensão de que é normal não conseguirmos produzir. Aliás, será que realmente precisamos produzir neste momento? Ou será que precisamos produzir tanto assim, pelo menos?
A reflexão que eu quero deixar aqui, então, é: preserve-se, cuide-se, respeite-se, permita-se. Sim, permita-se não assistir àquela série só porque já faz mais de seis meses que você começou a assisti-la e ainda não terminou; permita-se demorar dois meses para ler um livro de 300 páginas; permita-se passar um tempo sem ler, se é isso que você quer. Aprenda a reconhecer seus limites, enfim, e não se cobre por produtividade no seu lazer. Você não tem obrigação de se divertir com o que quer que seja!
Por fim, procure ajuda e apoio neste momento, se sentir necessidade. Você não precisa passar por tudo isso sozinho.
Comentários