Em tempos antigos, a China era formada por diversos reinos que disputavam a hegemonia um contra o outro em guerras sem fim. Nesse cenário caótico surge um homem chamado Shin que vem das camadas mais pobres da população que será a espada do futuro rei que unificará esses diversos reinos.
Gostamos de acompanhar a trajetória de grandes personagens. Aquelas jornadas que começam minúsculas com objetivos simples até que eles se tornem influências maiores do que o mundo. Narrativas de sucesso usam essa motivação e são essas longas jornadas que trazem frutos lá no final. Embora não seja tão conhecido como outros mangás, Kingdom é um dos mangás mais longos da atualidade ainda em publicação. Conta com uma legião de fãs ao redor do mundo. E por que isso se dá? Qual é o apelo dessa obra? Talvez uma mistura de fatores sejam condicionantes para o seu sucesso. E nessa matéria vamos tentar explorá-la um pouco remetendo a histórias clássicas como Senhor dos Anéis, Dragon Ball e tantas outras que, de uma forma direta ou indireta, interferiram em seu sucesso.
Kingdom é um mangá de Yasuhisa Hara que começou a ser publicado em 2006 e continua até o presente momento. Conta com 60 volumes publicados até o momento e é publicado na revista Young Jump. É um mangá extremamente popular e ele é uma daquelas histórias que se situam no limite do que significa um shounen e um seinen. Ou seja, sua narrativa tem vários dos clichês típicos de mangás shounens, mas com temáticas seinen e um pano de fundo bastante complexo. Em 2013, o canal NHK comprou os direitos de adaptação e os repassou ao studio Pierrot que foi responsável pelas duas primeiras temporadas. Preciso ser bem honesto e dizer que a primeira temporada é bem difícil de se assistir. Na época, a animação em 3D começava a ser usada em maior escala em animes de temporada e o resultado ainda era bastante polêmico. A tecnologia não era tão desenvolvido e os modelos vetoriais eram estranhos, estáticos e tinham uma movimentação bastante artificial. Imaginem aqueles CGS do Final Fantasy 7 na época do PS1. Era mais ou menos por aí. O studio Pierrot mesclava 2D e 3D o que não dava algo harmônico. A segunda temporada revelou uma evolução sensível no estilo de animação. Ter abandonado o CG para se focar no design de personagens e na fluidez foi a melhor escolha. E esta foi uma temporada em que alguns trechos emocionantes do mangá foram transpostos, o que agradou e muito os fãs. A terceira temporada se encontra em andamento no momento em que este artigo está sendo escrito. A NHK trocou o estúdio de animação e passou para o studio Signpost. Baita alteração, passando para animadores mais experientes. O nível mudou horrores e essa terceira temporada possui um design melhor e mais apurado. A temporada acabou sofrendo um baque porque ela começou em abril de 2020 e, quatro episódios depois, o estúdio decidiu parar a produção por causa do recrudescimento do covid-19 no Japão. O anime só voltou a ser apresentado um ano depois a partir do quinto episódio.
A história se passa na China na era dos reinos combatentes, um período que foi do século V a.C. até 221 a.C. quando a nação foi unificada por Qin Shi Huang. Nesse período sete reinos combatiam pela hegemonia na região: Qin, Chu, Wei, Zhao, Yan, Qi e Han. Todos reinos altamente militarizados e que combatiam em guerras frequentes. A narrativa explora esse período e a ascensão daquele que viria a ser o reino e o soberano que vão unificar e terminar com essa era de guerras. Mas, Kingdom tem como protagonista o jovem Shin, uma criança órfã de guerra que se torna serva de uma família em uma pequena vila do reino de Qin. Hyou, outro menino assim como ele, se torna o seu irmão. Ambos tem o sonho de se tornarem grandes generais e combater por Qin para conquistar fortuna e terras. Eles treinam todos os dias após um dia de serviço tendo esse objetivo como mola propulsora. Um dia, uma carruagem a mando do palácio de Xianyang passa por uma estradinha próxima à vila e um oficial interrompe o treino dos dois meninos. O oficial se chama Shoubunkun e ele compra Hyou da família ao qual ela trabalhava. Hyou foi comprado para trabalhar no palácio do rei de QIn e, apesar de triste, Shin torce por uma vida melhor para seu irmão. Algum tempo depois, quando Shin se preparava para dormir, Hyou volta totalmente ensanguentado, prestes a morrer. Shin o pega nos braços e pergunta o que aconteceu, e o seu irmão pede a ele para proteger uma pessoa. Depois de escapar daqueles que estavam atrás de Hyou, Shin segue até uma vila afastada onde encontra alguém exatamente igual a Hyou. É então que a história de Shin e Sei, o herdeiro do trono de Qin, começa.
Como bom protagonista, Shin é um personagem que o espectador rapidamente se identifica. De mentalidade simples e direta, ele quer se tornar o maior general existente na Terra. Para isso ele se atira de frente para o perigo e se coloca em situações complicadas com facilidade. Tem pavio curto e muita força física. Também como bom protagonista de um shounen, tem alta resistência e força de vontade. E sua evolução acontece à medida em que vai superando os obstáculos que lhe são apresentados. Mas, as semelhanças acabam aí. Quase sempre Shin se mete em problemas maiores do que ele é capaz de resolver. Ele logo percebe que a força bruta não é capaz de resolver todos os problemas. E sua história acaba se entrelaçando com a de Sei, mesmo ele indo contra o governante por ter usado Hyou como um sósia dele. Mas, existe uma necessidade maior de proteger o reino e as pessoas que dependem da força de Shin e de Sei. Ele vai percebendo que mais do que simplesmente se vingar por Hyou, que acabou sendo vítima de um plano contra o trono de Qin, era preciso pensar naqueles que, como ele, desejam a paz.
Apesar de ser um anime bastante focado nas guerras, nos heróis e nas estratégias de combate, existe também um forte senso de dever e o quanto a guerra pode ser terrível. Claro, existe aquele clichê de shounens em que o protagonista é um super-humano, que treinou à exaustão e é capaz de derrubar diversos inimigos como se fossem pinos de boliche. O mesmo vale para os grandes personagens, sejam eles aliados ou vilões. Mas, Shin vai aprender rapidamente o terror que existe por trás dos combates. Na segunda temporada, ele vai ter um momento crítico em que ele precisa ser carregado até o outro lado do campo de combate por um de seus amigos. E é uma situação onde várias pessoas morrem por causa dele, que havia se tornado um general de 100 homens. Tendo se tornado alguém responsável por várias vidas, ele precisa repensar a maneira como os comanda. Essas vidas dependem de movimentos acertados, confiança e poder. Tem um momento onde Ouki, um dos mentores de Shin (e um lendário general) diz a ele que essas almas, sejam daquelas vivas ou daquelas que partiram, estão colocadas nos ombros dele. E é um peso monumental carregar isso para o campo de batalha. À medida em que ele vai sendo bem sucedido nos combate, mais e mais vidas são colocadas em seus ombros.
Tem outro momento muito bom (esse não vou dizer aonde) em que Shin enfrenta um pelotão formado pelos filhos e irmãos de soldados que sofreram um massacre no campo de batalha. Todos os soldados remanescentes de um combate foram enterrados vivos por um general muitos anos antes de Shin nascer. E esse pelotão se tornou uma espécie de anjo vingador contra Qin. O seu comandante é responsável por assassinar todo e qualquer cidadão de Qin, seja ele soldado, civil, mulher, criança ou velho. E o general coloca a culpa dessa mortandade no genocídio dos soldados. Ou seja, Shin enfrenta o ciclo da guerra que traz mais e mais violência a cada nova pessoa envolvida. E até mesmo os crimes cometidos durante a guerra. É correto os descendentes daqueles cometeram tal atrocidade pagarem por aquilo que foi feito? Será que não estaremos apenas criando mais pessoas injustiçadas que buscarão a justa vingança e manterão o ciclo de violência? Outro bom momento é a constatação de Shin ao ver soldados praticando roubos, assassinatos e estupros após a conquista de uma cidade. É legal vermos os grandes combates e os heroísmos, mas a discussão sobre a natureza da guerra está bem ali. E o autor não foge dos temas.
Há também bastante manipulação real também. Para quem curte uma boa história de traições e conspirações, bem na vibe de Game of Thrones, tem bastante disso também. Principalmente porque Sei está em uma posição frágil quando assume o trono após resolver os problemas sucessórios. Ele se livrou do irmão mais novo que queria o poder para si, mas existe toda uma facção dentro de Xianyang que deseja pôr outro rei no trono. E Sei assume muito novo, sendo apenas um regente até o momento de sua coroação quando ele se tornar adulto pelas leis de Qin. Nesse momento, uma figura importante dentro de sua corte detém as cartas. Possui administradores e generais que são mais poderosos que o grupo liderado por Sei. Um dos generais mais poderosos do reino está sob a tutela desta pessoa. Portanto, vencer guerras é importante, mas, acima de tudo, é preciso saber jogar o jogo dos tronos. Lidar com traidores, angariar aliados, exilar inimigos. Isso sem contar no papel exercido pelo harém real, que vai se tornar uma outra fonte futura de dor de cabeça para o nosso personagem. Sei e Shin vão se tornando quase complementares à medida em que a história avança. Se Sei é um hábil líder, Shin é sua espada poderosa.
Para completar o trio de protagonistas, não posso esquecer de Karyo Ten. Uma jovem menina (que Shin pensa ser um menino até a adolescência... ai ai... coisas de mangá) encontrada por Sei e Shin que vai se tornar o elo de conexão entre os dois. O convívio com os dois amigos e a frequência da guerra vai fazer com que Ten se preocupe em não vê-los novamente. E ela deseja poder fazer alguma coisa por eles. Infelizmente, Ten não tem habilidades de combate, então ela vai precisar encontrar outras formas para ser útil. E é aí que surge a estrategista. E como ela cresce na história. Precisando aprender sobre estratégia, ela vai passar a enxergar a guerra de outra maneira. O curioso é que Ten começa empolgada com seu aprendizado sobre estratégia, assim como Shin iniciou como guerreiro, e o desencanto vem logo em seguida. Ao estar ao lado do general Li Mu em cima de uma torre observando uma batalha campal, ela percebe quantas vidas são dirigidas por ela. Um estrategista pode ser responsável por uma vitória fabulosa ou um desastre violento. Além de ter de pensar em seus soldados como números no campo de batalha. Evitar perdas grandiosas... fazer com que menos pessoas morram. Mas, estes números são pessoas. E quando o estrategista conhece individualmente estas pessoas?
Kingdom é um dos melhores mangás na atualidade. A adaptação em anime está muito boa nessa terceira temporada com um arco incrível que coloca uma aliança de nações contra Qin. Existem momentos épicos aguardando os fãs. Se você ainda não conhecia, o anime pode ser encontrado com facilidade em plataformas de streaming. Aproveitem porque tem quase uma centena de episódios para assistir. E a história está apenas começando. A animação melhorou demais desde a primeira temporada que não era muito boa e a história é muito cativante.
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