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Foto do escritorPaulo Vinicius

A guerra cultural pela literatura

Em vários momentos da história, livros foram proibidos por instituições ou governos. O quanto isso afeta nossa capacidade de pensar por nós mesmos? Qual o impacto da censura?


Já discuti em outras matérias o quanto conhecimento equivale a poder. Através de vários momentos históricos, instituições demarcaram sua autoridade através do emprego de um tipo de alfabeto, da forma de aprendizado, do tipo de formato de livro a ser produzido. Mas, controlar a veiculação do conhecimento também é uma forma de expressão de poder. Um pouco mais abrupta e violenta, mas ainda assim é. Em vários momentos da história, instituições ou governos usaram de sua autoridade para dizer o que um leitor poderia ou não ler. Chamamos isso de censura.


A palavra censura vem da família do latim censo. Na Roma antiga, havia uma magistratua chamada de censor. Era um funcionário público responsável por recensear a população para facilitar o trabalho dos questores, os cobradores de impostos. Os censores se tornam essenciais a partir da expansão de Roma por territórios fora da Itália. Mas, o censor também era responsável por fiscalizar a moral e os bons costumes. Se inicialmente essa era uma magistratura mais civil, ela vai adquirindo um viés mais religioso a partir do final do Império Romano com imperadores mais ligados aos aspectos da religião, fosse um apóstata como Juliano ou um cristão enrustido como Constantino. Fato é que já no Império Romano vimos alguns indícios de censura em maior grau, vindo da época da organização da Igreja católica que buscou escolher quais livros iriam fazer parte da Bíblia cristã. Alguns evangelhos considerados mais polêmicos ou de conteúdo duvidoso foram censurados da versão final do livro sagrado.


Isso não quer dizer que não havia censura anteriormente. Basta vermos o caso da queda do faraó Akhenaton no Egito antigo. Depois de ter transformado o politeísmo egípcio em um monoteísmo voltado ao deus Aton, e de ter transferido a capital para Amarna, seu reinado foi bastante efêmero com a nobreza de Mênfis conseguindo retomar o poder. Após sua queda, o príncipe Tutankhamon não passou de um fantoche e ele e Nefertiti, sua mãe, foram obrigados a reconhecer os erros de Akhenaton e retomar o culto politeísta. Durante o reinado de Akhenaton inúmeros escritos sagrados, templos e tumbas foram erigidos de forma a propagar a nova religião. A partir de Tutankhamon, os sacerdotes e oficiais reais realizam um verdadeiro apagamento da história, riscando o nome do antigo faraó da tábua dos reis e vandalizando tudo o que se vinculava a ele. Qualquer material que versasse sobre o faraó deveria ser queimado e destruído. O objetivo era apagar para sempre a imagem de um blasfemador, na visão dos sacerdotes, da face da Terra. É o uso da máquina administrativa para mudar a história, para selecionar o que deve ou não ser transmitido às gerações futuras.


Avançando vários séculos no tempo, podemos nos deparar com a Igreja católica do início da Idade Moderna. Poderíamos falar sobre a concentração de livros que eles exerceram alguns séculos antes, trancados nos scriptoriums, transcrevendo obras clássicas, como uma espécie de censura também. Pode, mas vale mencionar a criação do Index Prohibitorum, um catálogo contendo todos os livros considerados hereges pela alta cúpula eclesiástica. O chamado livro negro foi uma das decisões saídas do Concílio de Trento, no século XVI, que visava restaurar a autoridade da Igreja em um momento bastante complicado de sua história. Diversos membros do clero eram visados com denúncias de corrupção, venda de indulgências e favorecimento de cargos. A ideia do clero era direcionar as mentes rumo a um conceito de moral que nem a própria Igreja era ciosa. Pessoas que eram encontradas tendo esses livros em suas residências eram denunciadas ao Tribunal do Santo Ofício que realizava a acusação de heresia. É daí que começam as lendas sobre livros demoníacos. Curiosamente o manual usado por inquisidores para perseguir as bruxas, o Malleus Maleficarum (o Martelo das Feiticeiras), fazia parte do Index. Os autores, Heinrich Kramer e James Sprenger, foram excomungados pela Igreja. Alguns autores defendem que o Malleus não estava na primeira versão do Index, mas isso só mostra o quanto as demonstrações de poder e de controle sobre o que deve ou não ser lido não possuem critérios claros. O Index teve várias versões com livros entrando e saindo de suas linhas à vontade de quem estava no poder máximo.


Se estamos falando em queima de livros, os leitores logo irão se lembrar do incêndio da biblioteca de Alexandria, na Antiguidade. Só que esse é um episódio ainda sem detalhes precisos como data e responsáveis e prefiro algo mais dramático como a queima de livros árabes pela Inquisição espanhola em 1499. E novamente nos deparamos com a Igreja buscando exercer sua autoridade sobre as mentes de seus fieis. Desde a Alta Idade Média, o catolicismo se via frente a frente com o Islã em uma disputa por fieis e espaço. Só que por muitos séculos a Andaluzia foi um oásis onde cristãos, judeus e muçulmanos conseguiam coexistir. Isso proporcionou enormes avanços para o Ocidente já que os árabes não tinham os mesmos repúdios que a população europeia que estava sob a égide do cristianismo. É no Oriente Médio que se desenvolvem as técnicas de sutura, a astronomia, a matemática mais avançada. Mas, quando inicia-se o processo de Reconquista por todo o território espanhol a Igreja avança lado a lado com os exércitos castelhanos. Dois tristes episódios desse período foram a expulsão dos judeus sefarditas em 1496 e a queima de mais de 5000 obras árabes em 1499. Dessa maneira, o catolicismo se tornou a religião dominante nos reinos de Aragão e Castela que viriam a dar origem à Espanha unificada.


Para fecharmos a discussão sobre a censura sob o campo religioso, não podemos deixar de nos referir à barbárie provocada pelos espanhóis no Novo Mundo. Quando estes se depararam com a cultura dos povos incas, astecas e maias, os espanhóis ficaram horrorizados com suas práticas que podiam envolver sacrifícios humanos ou de animais, adoração a deuses ligados à natureza, governos que usavam sistemas políticos e econômicos estranhos demais à compreensão deles. Ao invés de buscar entender como estes funcionavam, os colonizadores decidiram usar de uma tática de terra arrasada e queimar seus manuscritos sagrados, derrubar templos e cidades e instaurar uma conversão à força ao cristianismo. A justificativa era que eles estariam trazendo a "civilização" a povos que nunca haviam tido contato com os livros sagrados. Nesse caso aqui, a censura é usada para reforçar o poder e subjugar povos que viviam sob um outro conjunto de valores anteriormente. A submissão pela aceitação forçosa foi um princípio usado também com os escravos negros trazidos da África que eram batizados coletivamente antes de entrarem nos navios negreiros. Segundo os padres da época, mesmo que eles morressem durante a viagem, suas almas estariam "salvas".


Avançando rumo ao presente, precisamos apontar o quanto os regimes ditatoriais detestam a

livre circulação do pensamento. Tanto o modelo fascista como o socialismo stalinista queriam manter um controle estrito sob a sua população. Para alcançar a disciplina e a eficiência, livros e religião deveriam ser mantidos de fora. Hitler justificava as enormes fogueiras de livros como sendo uma maneira de se livrar de materiais inúteis. Apenas aquilo que valorizava o espírito alemão era necessário para o engrandecimento da população. Claro que isso fazia parte do espírito propagandista preconizado por Joseph Goebbels, o responsável pela transformação do regime em algo aceito sem discussões pela população. Já Stálin tinha uma mão de ferro. Em sua visão era preciso se voltar para aquilo que Lênin havia iniciado décadas antes, Mais paranoico do que Hitler, ele temia a formação de algum tipo de oposição mais organizada e que pudesse colocar o governo em risco. Por um lado temos um governante desejando censurar para ditar o que deveria ou não ser lido e de outro alguém que governava pelo medo onde o livre pensar era uma ameaça.


Um fenômeno semelhante aconteceu no Brasil durante a Era Vargas e a ditadura militar que ocorre mais tarde. Getúlio Vargas instaurou o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) durante o Estado Novo, entre 1937 e 1945, que era responsável pela propaganda do regime, criando datas comemorativas, ressaltando as obras feitas pelo presidente, incentivando uma produção cultural governamental. Mas, além disso, o DIP era responsável também por censurar obras que fossem consideradas ofensivas ao governo. Mais tarde o DIP deu lugar ao DOPS que não apenas era uma instituição vinculada à censura, mas também à prisão e tortura dos opositores. A censura no Brasil também tinha um viés de controle. Havia inclusive uma vinculação do regime militar a uma pauta de costumes, voltada para a preservação da família e da moral. Curiosamente é durante a ditadura militar que os roteiros de filmes do gênero da pornochanchada ganharam mais e mais visibilidade. Roteiros esses que não eram nem um pouco "familiares" ou "moralistas", os diretores escondiam pautas de crítica ao regime em meio ao erotismo de atrizes que mostravam seus dotes para a câmera. Um dos filmes mais famosos dessa era foi Bonitinha e Ordinária que discutia a desigualdade social e a hipocrisia da classe média que fingia não ver a violência do governo e o sofrimento do povo. Essas histórias não foram censuradas. Neste sentido me recordo de um professor da faculdade de História chamado Paulo Cavalcante que nos falava sobre os descaminhos do ouro e as trambicagens usadas pelos colonos para burlar a lei. Se pararmos para analisar a censura da época era vencida por estratégias pensadas para ultrapassar os obstáculos colocados pelas instituições.


Para fecharmos nossa discussão, não podemos deixar de mencionar o cerceamento que alguns Estados norte-americanos tem feito em relação ao ensino de literatura a crianças e adolescentes. Livros mais críticos como a HQ Maus, de Art Spiegelmanmn, o livro Fahrenheit 451, de Ray Bradbury entre muitos outros passaram a ser proibidos nas escolas. Essa censura tem vindo de duas direções: das associações de pais ligadas a Estados mais conservadores ou populações mais ligadas a religiões neopentecostais. A ascensão do partido republicano e suas pautas mais estridentes tem suas ramificações na necessidade de cercear a mentalidade dos jovens. Ao controlar o que é distribuído e lido nas escolas, o objetivo é replicar os valores defendidos pelos republicanos. Isso provocou fortes críticas em Estados mais progressistas, mas a verdade é que os EUA se veem às voltas com um retrocesso forte que tem seu simbolismo nas políticas culturais. Óbvio que podemos apontar o Brasil como outro exemplo dessa pauta ganhando força, mas as instituições ainda funcionam ou funcionaram adequadamente para embarreirar a sanha conservadora.


Censura sempre existiu em diferentes momentos históricos. Coube à sociedade resistir da maneira que julgou necessária em uma determinada conjuntura. Seja através de revoltas e revoluções ou pelos descaminhos, enganando e burlando o sistema. Os objetivos por trás da censura de livros são as mais diversas possíveis, seja o controle de mentes e corpos, o apagamento da história, ou o simples saque e destruição. A leitura e os livros são componentes frágeis nessa equação e cabe a cada um de nós sermos os guardiões de uma rica cultura literária que se estende por milênios.




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2 комментария


Rubens Miranda
Rubens Miranda
03 июл. 2023 г.

Gosto muito como essa censura dos livros é tratada como pano de fundo do enredo de "O Nome da Rosa" do Umberto Eco.

Лайк
Paulo Vinicius
Paulo Vinicius
03 июл. 2023 г.
Ответ пользователю

E é incrível como o Eco trata disso em um cenário na Idade Média, mas com vários paralelos aos nossos dias. É usar a ficção especulativa para trazer um assunto atual para uma discussão mais séria.

Лайк
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