Será que uma boa ideia sempre dá origem a uma boa história? Vamos examinar hoje a coerência narrativa e o que fazer quando uma boa ideia simplesmente não dá certo.
Uma das coisas que estamos bastante habituados a ler ou escutar quando um escritor fala a respeito de como começar a escrever é que devemos simplesmente passar para o papel boas ideias que temos. É o famoso conselho que Neil Gaiman deu em uma palestra de formandos, "Faça Boa Arte". E de fato esse é um bom conselho e serve para nos tirar de um momento de estática e nos colocarmos para produzir algo. Só que pouco depois que começamos a colocar nossas boas ideias para o papel, percebemos que esse não é um ato tão simples como parece. As dúvidas e as dificuldades aparecem e as ideias parecem que não se concatenam umas com as outras. Desse momento em diante, um escritor tem duas opções: ou ele interrompe o processo e acaba se frustrando com isso ou ele persevera e acaba escrevendo à base de força bruta e gera um texto que pode ser oito ou oitenta. Na maior parte dos casos é menos oito.
A ideia para essa matéria surgiu após o término de uma série de ficção especulativa em animação muito boa chamada Sonny Boy (parece que algumas das minhas ideias mais recentes tem surgido a partir de animações japonesas). A proposta básica é sensacional. Um grupo de estudantes em uma escola se veem "transportados" para outra dimensão em que a escola acaba indo parar. Parece ser um enorme espaço vazio onde apenas a escola se situa. Dentro desse universo em miniatura, cada um dos alunos recebe os mais variados poderes, sendo que todos esses poderes modificam a realidade de alguma forma. Tem uma pessoa que recebe o poder de sempre saber a entrada para uma dimensão paralela, tem outra que dobra o espaço e consegue voar, tem outro que separou o seu yin e o seu yang, tem outro que consegue criar qualquer objeto e dar um uso a ele. O protagonista é dotado de uma habilidade que não é clara em um primeiro momento e depois descobrimos que ele é capaz de navegar pelos diversos universos em miniatura existentes ao longo da série. Sim, nesse espaço onde a escola se situa, logo eles encontram uma ilha onde conseguem ficar e de lá existem outros portais para uma série de dimensões paralelas malucas.
A temática geral da série parece uma mistura bizarra entre O Senhor das Moscas, de William Golding com qualquer outra obra sobre garotos jovens com poderes. No começo imaginamos que a série vai tratar dos problemas entre eles em uma espécie de múltipla jornada de amadurecimento. Temos a menina que se sente uma outsider, o protagonista que é indiferente ao mundo que o cerca, a garota sonhadora cujo temperamento não é aceito pelo mundo, os bullys, a líder do grêmio que é uma ditadora. Problemas típicos oriundos desse gênero de histórias. Mas, subitamente a história muda de abordagem e começa a tratar de problemas filosóficos e existenciais e toda a questão dos alunos e sua dificuldade para sair de um mundo à deriva são deixados de lado. Ambas as metades da história apresentam possibilidades e insights que são sensacionais e o roteiro é bastante rico. Só que ele não faz o menor sentido. Com o passar dos episódios, os espectadores vão perdendo o interesse com os problemas dos personagens até chegar os dois últimos episódios onde importantes desenvolvimentos se desenrolam. E a gente simplesmente não se importa. Um personagem importante morre por um determinado motivo. E a reação é de não darmos a mínima. O final tem umas reflexões descoladas, mas que no escopo geral da história não são importantes. São ótimas frases saídas de uma obra de filosofia ou de auto-ajuda. É como se eu baseasse toda a minha série em exemplificações saídas de um livro de Platão. Daria uma obra incrível, mas que não teria coerência alguma.
O que Sonny Boy foi capaz de demonstrar com clara nitidez é que boas ideias não geram boas histórias necessariamente. Elas podem nos fornecer pistas e um plano geral sobre o que pretendemos levar para as páginas de nosso futuro trabalho. Mas, sem planejamento é o mesmo que fazer um bom recheio de bolo sem ter o bolo. Sair da estática e conseguir escrever algo é um primeiro passo. Se você tem uma boa ideia, rascunhe-a. Despeje o que você pensou em algum tipo de planner geral e pense nas possibilidades que essa ideia pode gerar. Esse é um passo fundamental. A partir daí é que vem o momento em que a ideia precisa ser gestada a partir das relações que serão estabelecidas. Por exemplo: digamos que tive a ideia de criar um pirata dimensional com o poder de mover objetos e ele está atrás da fórmula do solvente universal para salvar sua irmã que foi amaldiçoada por um terrível feiticeiro de seu mundo. Essa é a minha ideia geral. Quem é esse personagem? O que ele é? Como adquiriu seus poderes? Por que sua irmã foi amaldiçoada? Quem é o vilão? Por que o protagonista é um pirata? Todas essas perguntas não precisam ser respondidas na hora. Elas podem ser respondidas aos poucos à medida em que a boa ideia começa a ganhar mais e mais solidez. Esses elementos vão se somando à ideia principal e fazendo com que a narrativa se desenvolva naturalmente.
Lógico que esse "fermento" que a ideia principal vai recebendo não é a história em si, mas suas linhas gerais. A formatação dos atos e dos capítulos vai se dar em um momento posterior quando o autor vai criar as cenas em que os acontecimentos vão se suceder. Aqui é o momento de brainstorming consigo mesmo. É importante que nesse momento inicial não haja uma afobação. Um processo de escrita precisa ser natural. Vai haver o momento em que o postulante a autor terá para suar e sangrar enquanto escreve sua narrativa. Mas, esse não é o momento. Uma boa fermentação das ideias é o diferencial entre uma história incrível e um mumbo-jumbo de ideias jogadas em um caldeirão. Pode ser sábio escrever suas ideias em um caderno ou em um doc e guardar em um arquivo de boas ideias. Diversos autores como George R.R. Martin, Stephen King e Neil Gaiman já deram depoimentos de algumas de suas ideias levaram anos para serem gestadas de fato. Permaneceram no fundo de uma gaveta até que veio o momento certo de escrevê-la. Um bom exemplo disso é o livro Caçador em Fuga, escrito por Gardner Dozois, George R.R. Martin e Daniel Abraham. Embora seja creditado a seis mãos, a ideia da história veio de Dozois, um famoso organizador de coletâneas literárias. Em um dado momento de sua vida ele esboçou uma ideia para uma história para o papel, mas admitiu não ter o melhor dos talentos como escritor e passou seus originais para que seu amigo Martin desse uma olhada. Na época, o famoso autor de Crônicas de Gelo e Fogo não teve tempo para trabalhar melhor a ideia e ele não conseguia oferecer saídas para o labirinto de histórias criados por Dozoius. Somente décadas mais tarde é que com a ajuda de Daniel Abraham, Dozois conseguiu finalmente publicar sua obra.
Não estou dizendo que um postulante a autor precisa escrever um livro a quatro, seis ou oito mãos. Apenas que uma ideia pode não gerar frutos na velocidade em que imaginamos. E não podemos ser arrogantes o suficiente para entendermos a necessidade de pensar melhor acerca de um insight. As ferramentas de roteiro e de escrita criativa estão aí para nos auxiliar nesses momentos difíceis. Sem falar que ideias se originam de inspirações. E a saída para um problema de roteiro pode estar em algo ao qual o escritor ainda não teve contato. Um comercial de TV, um filme, uma série, um game, uma conversa despropositada, uma cantoria embaixo do chuveiro. A inspiração pode vir de lugares absolutamente improváveis. Não nos programamos para ela; simplesmente acontece.
Mais do que isso: precisamos também estar dispostos a abandonar uma boa ideia quando ela não faz sentido algum. Como no exemplo de Sonny Boy. Um dilema terrível é entender o abandonar, o deixar de lado e buscar outras ideias. E isso pode acontecer até mesmo no meio da escrita de nosso grande trabalho. Quando as ideias não são coerentes, as saídas para os problemas não fazem sentido. Ou até quando o dilema do protagonista é irrelevante. Nem sempre a saída para um roteiro é aquela ideia mirabolante, mas uma saída simples e direta. Sei que nossos egos de criadores falam o contrário, mas uma obra literária não é escrita para si mesmo e sim para aqueles que terão contato com ela. São os leitores que irão abraçar a ideia e florescê-la, ressignificando-a e transformando-a em coisas que jamais teríamos imaginado. Ou seja, precisamos ter a consciência e a maturidade de entendermos quando uma boa ideia é boa apenas para nós e não para os outros. É uma baita lição de humildade e maturidade. Talvez ao abandonar aquela ideia no qual um autor passou meses batendo a cabeça em uma parede, surja uma nova cuja execução será muitas vezes mais simples e produtiva do que a anterior. Escrever é viver um novo dilema a cada novo dia.
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