Classicismo versus cultura pop. Alta ou baixa literatura. Isso ou aquilo, o que é melhor? Afinal, será que existe relevância nessa discussão sem fim, ou tudo se resume no velho preconceito?
Uma discussão que nunca cessa versa sobre as diversas manifestações culturais. Música, cinema, dança, artes visuais e plásticas... e, dentro da nossa esfera, a literatura. Partindo do pressuposto que cultura é tudo o que é produzido por um determinado povo, será possível ainda diminuir – até mesmo rechaçar – uma produção em detrimento de outra?
As acusações são inúmeras, de todos os lados. Sempre é possível ver comparações esdrúxulas entre grandes obras do cinema clássico com filmes de heróis, por exemplo. A comparação por si só já é absurda, afinal, quem quer comparar maçãs com bananas quando se pode apreciar ambas as frutas? Quem nunca leu um artigo criticando a “falta de profundidade” de um filme de ação, quando, a bem da verdade, sua missão é empolgar, entreter e cativar o público? Nem todo filme precisa ser uma obra-prima premiada, não é isso o que queremos. No fim de um longo dia de trabalho nós queremos diversidade, opções de qualidade, poder de escolha e um pouco de diversão, cult ou não.
Olhando um pouco para o cenário literário, séculos depois ainda estamos na mesma guerra: alta cultura e baixa cultura. Fruto de um pensamento terrivelmente conservador e datado, conduzido principalmente por estudiosos que se recusavam a experimentar o novo e a reconhecer como válida a expressão popular – a Escola de Frankfurt (início do século XX) -, é lamentável ver esse pensamento reproduzido na nossa realidade. A alta cultura, me parece, é um conceito criado para proteger o clássico, o belo, o agradável, o acessível apenas à elite, das camadas populares e impedir a miscigenação da arte. Trocando em miúdos, é uma invenção dos ricos para afastar os pobres, mantendo-os à margem da sociedade (como sempre).
Então nos deparamos com discussões vãs comparando a obra tolkieniana e Harry Potter; Saramago e George R. R. Martin; clássicos versus cultura popular. É indigno sequer pensar que duas produções tão distintas, pensadas para públicos singulares, em épocas e contextos diversos, entre inúmeros outros fatores, possam ser postas lado a lado sob o olhar desdenhoso do preconceito. Mary Shelley, uma das autoras mais proeminentes de língua inglesa, também sofreu preconceito à sua época, sua escrita tendo sido considerada, inclusive, vulgar (baixa cultura, em uma interpretação livre). Dá para acreditar que estamos fazendo a mesma caça às bruxas, séculos depois?
É claro que precisamos considerar o valor de Edgar Allan Poe, H.P. Lovecraft, Sir Arthur Conan Doyle, Mary Shelley, Emily Brontë, Jane Austen, George Orwell, Shakespeare, Machado de Assis... São cânones atemporais, precursores de seus gêneros, influenciadores da mais variada gama de escritores de todas as gerações. Exigir de um livro infantojuvenil, por melhor que seja, alcançar a profundidade das palavras de qualquer dos grandes autores da literatura clássica é, no mínimo, insanidade. Desprezar qualquer autor por não chegar ao que se espera de seus antecessores, por outro lado, é puro preconceito. Qualquer livro pode ser muito bom; qualidade nada tem a ver com classicismo.
Não se trata apenas de respeitar o gosto do leitor. Nem é uma questão de respeito ao autor ou ao livro. Não é só isso. Quando falamos de preconceito literário precisamos enxergar a expressão cultural, a história, a narrativa de um povo. Criticar a fantasia brasileira, por exemplo, é ignorar a formação e consolidação do nosso próprio repertório cultural. Diminuir leitores de chick-lit, romances de época, hot, ou, ainda, infantojuvenis e distopias adolescentes, é querer suprimir a necessidade e a identificação do outro com cada história. É fechar os olhos à representatividade. É não ter empatia, só preconceito.
Essa é uma longa discussão com raízes profundas. É importante reafirmar, sempre, que não existe cultura certa, nem melhor ou pior, apenas manifestações culturais diferentes. A literatura, além de ser a nossa velha amiga, nosso entretenimento de sempre e o lar da nossa imaginação, é também uma ferramenta incrível, poderosa, para expandir conhecimentos e quebrar preconceitos. Sair da bolha. Conhecendo novas narrativas, redescobrimos o mundo. E viva a diversidade!
Seu enfoque é perfeito. Excelente artigo.