A parceria de vinte anos que existia entre o Prêmio Sesc de Literatura e o grupo editorial Record chegou ao fim. Segundo pessoas envolvidas, seria mais um caso de censura. Saibam mais sobre o caso na postagem a seguir.
Vai parecer que isso foi combinado ou que o editor do site virou um comunista sem vergonha, mas não. Não foi combinado. Vamos falar de censura mais uma vez. Porque parece que isso se tornou um tema comum hoje. E isso está me preocupando bastante porque daqui para as fogueiras de livros não falta muito. É o bom e velho medo que Ray Bradbury nos mostra lá em Fahrenheit 451 e que parece que tem um número considerável de leitores que não entendeu a mensagem. É importante tocar nesse tema porque vivemos tempos delicados onde a liberdade de expressão é atacada e quando não é atacada, é distorcida com fornecer desinformação. Principalmente quando o profissional faz parte da esfera pública ou ocupa um cargo que possui um peso social considerável. Ideologia não pode ser confundido com fanatismo ou fundamentalismo. Karl Marx, um autor tão criticada pela direita conservadora, valorizava o diálogo. Somente a partir do diálogo podemos crescer como sociedade. Um povo dialógico cresce junto; se transforma no ideal. E isso só é possível quando encaramos nossos medos e receios de frente. E damos uma resposta real a eles.
Já há vinte anos, o grupo editorial Record vinha mantendo uma parceria com o grupo Sesc que tinha como uma de suas atividades culturais anuais o Prêmio Sesc de Literatura. O objetivo da premiação é o de valorizar novas vozes da literatura e apresentá-los ao grande público. Entre alguns premiados famosos estão Luisa Geisler, Marcos Peres, Sheyla Smanioto. Nomes grandes e que trouxeram consigo o frescor de um movimento de vanguarda no século XXI. A Record funcionava como a editora que publicava os materiais e fazia a divulgação para o Brasil todo. Ser publicado por uma das maiores editoras do Brasil (se não a maior) era uma grife que muitos autores novos buscavam. Um concurso altamente competitivo envolvendo a nata da literatura nacional. Livros como Desesterro da Sheyla Smanioto ou O Legado de nossa Miséria de Felipe Holloway mostram a variedade e a força desses materiais. Dessa forma, a premiação se tornou uma referência.
Mas, o Brasil se tornou um lugar estranho onde tudo se tornou politizado e os esqueletos decidiram sair de seus armários. No final de 2023, a Record organizou um evento de lançamento do vencedor do Prêmio Sesc do ano passado, o livro O Outono de Carne Estranha, do autor Airton Sousa. No evento foi realizada uma leitura de um trecho do livro. A história se passa em Serra Pelada, durante a explosão do garimpo na década de 70. A narrativa tem como protagonistas um casal homoafetivo que vive dentro de um ambiente cercado de violências e desumanidade. O objetivo do autor era mostrar a realidade dura desse difícil período de nossa história. O que era para ser um evento bacana, para mostrar mais um bom livro chegando às prateleiras se tornou o prelúdio para o que viria a ser os acontecimentos posteriores. Membros do conselho do Prêmio Sesc estavam durante a leitura e se sentiram desconfortáveis com os temas abordados pelo autor. Deixando de uma forma bem clara: eles não gostaram que se tratava de um casal homoafetivo e muito menos que se fizessem críticas ao garimpo. Após o evento, a organização do Prêmio Sesc se reuniu e decidiu mudar as regras para o próximo edital. Um dos pontos mais incômodos nas novas regras foi a de que antes o prêmio era tinha como alvo o público adulto e isso foi substituído para público geral, o que gera muita dubiedade no momento da escolha dos indicados. Outros acontecimentos queimaram as pontes entre Record e Sesc como a mudança da organização do prêmio, a demissão de pessoas que trabalhavam no comitê julgador e a substituição por pessoas cuja escolha gerava críticas. Sem falar nos atrasos na divulgação do edital e na obediência aos prazos. Tudo levou a um clima insustentável levando a Record a abandonar a parceria.
A Record soltou uma nota oficial sobre os motivos que levaram à saída dela da premiação que vocês podem encontrar neste link. Enfim, não sejamos ingênuos, gente. Estamos falando da editora que publicou o Olavo de Carvalho. Então, não tem ninguém ilibado ou puro nesta história. Só que os ventos são outros. Vejam, ninguém buscou censurar o Olavo, por mais que ele falasse um sem número de asneiras. Hoje, a Record retirou o autor de seu catálogo, não devido a uma censura, mas sua associação a teorias golpistas e as próprias posturas do "filósofo" quando ainda vivo. Outro ponto importante e que é preciso deixar claro é que o Sesc representa toda uma elite empresarial e que é marcadamente conservadora. Provavelmente o atual grupo dirigente é mais alinhado à direita e deseja atender a um tipo de publicação que tenha mais a ver com sua linha de pensamento. Isso deixa o prêmio em maus lençóis. Perde credibilidade porque qualquer autor que se inscreva vai pensar duas vezes se o seu livro não foi indicado às fases mais avançadas da premiação. Quais os critérios de escolha? Houve uma censura por temas? Isso é ruim porque pende a balança para favorecer autores que publiquem materiais voltados para essa forma retrógrada de pensar.
E isso não é um problema apenas no meio privado. Alguns Estados brasileiros tem feito censuras locais a materiais paradidáticos enviados para as escolas. Goiás e Paraná largaram na frente nessa distopia tupiniquim em que parece estarmos caminhando. Livros que faziam parte do kit do MEC para as escolas foram interceptados pelas secretarias locais de educação e devolvidos com a justificativa de que não atendiam ao interesse público. Não obstante, os dois governadores são alinhados ao bolsonarismo, Ronaldo Caiado e Ratinho Junior, respectivamente. Mas, tem mais: as igrejas neopentecostais tomaram conta dos Conselhos Tutelares locais e tem feito uma pressão dentro das comunidades para que livros que fujam ao teor da "moral" e dos "bons costumes" sejam retirados do currículo. E eles possuem uma influência em regiões mais pobres que é muito grande. Os movimentos governistas e ligados à esquerda brasileira não se deram conta do perigo que representa a permanência de pastores e outras figuras bolsonaristas nos Conselhos Tutelares. Essas instituições lidam diretamente com as direções escolares e frequentemente atacam profissionais de educação com a justificativa de manter as virtudes da boa escola.
Na minha visão, nenhuma censura é boa. E isso vale para os dois lados. Não se combate a extrema-direita com a mordaça, mas com a justiça e a verdade. A censura é também se esconder dos próprios dilemas e problemas internos. É não enfrentar aquilo que nos aflige. A literatura brasileira de qualidade toca nessas feridas e as expõe para que possamos fazer uma reflexão sobre quem somos e para onde vamos. Livros como Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, expõem as mentiras e as falácias que tanto estão colados na nossa sociedade. Caso queiramos empurrar as coisas para debaixo do tapete, nunca vamos conseguir superar esses problemas e nos tornar um povo melhor. Somente debatendo, somente mostrando a ferida na carne é que o debate é gerado. Estamos acompanhando de perto o quanto o bolsonarismo vem se debatendo nas suas próprias mentiras, se afogando em seus medos. Para quem idealizava uma nação sem corrupção, não é isso o que estamos vendo na realidade. E isso vale para essas pequenas "milícias locais" que intimidam e atrasam a educação e a cultura. Precisamos estar atentos e nos levantarmos contra as injustiças. Pôr um freio nas ambições da extrema-direita. É lamentável a postura do Prêmio Sesc e fica aqui o meu repúdio a isso.
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