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Foto do escritorPaulo Vinicius

Como não fazer a continuação de um anime de sucesso

Hoje vamos falar da segunda temporada de The Promised Neverland, a continuação de uma das sensações dos últimos tempos. Mas, algumas mudanças de roteiro provocaram um desastre de proporções fenomenais.



The Promised Neverland é uma animação do estúdio Cloverworks baseada em um mangá com roteiros de Posuka Demizu e arte de Kaiu Shirai completo em vinte volumes. A história segue um grupo de órfãos da casa Grace Field que vivem tranquilamente ao lado da tutora Isabella. Até que um dia, Emma e Norman descobrem que as crianças que supostamente eram adotadas por famílias, na verdade eram entregues como alimento para demônios. Emma e Norman passam a planejar uma fuga deles e das outras crianças da casa para evitarem ser devorados. Mais tarde Ray se une ao grupo.





A partir daqui spoilers, spoilers, spoilers, spoilers, spoilers. Vamos discutir a segunda temporada do anime e fazer algumas comparações com o mangá.



No final da primeira temporada, um grupo formado por Emma, Ray e várias outras crianças conseguem pular o muro que separa Grace Field do mundo lá fora. Norman acaba se sacrificando pelo grupo, permanecendo para ser capturado por Isabella. O início da segunda temporada tem os garotos chegando a uma floresta e encarando vários perigos até serem resgatados pelos misteriosos demônios Sonju e Mujika. É aí que eles ficam sabendo um pouco mais sobre o mundo, a aliança entre humanos e demônios e como as crianças criadas nas fazendas se encaixam nesse processo. O objetivo final de Emma e Ray é encontrar uma espécie de abrigo cuja localização foi deixada pela misteriosa figura de Minerva.


Desde a primeira temporada que os espectadores perceberam que o diretor responsável pela série junto com Posuka Demizu decidiram tomar algumas decisões diferentes do mangá para a animação. Era mais uma escolha de foco do que alterações de roteiro. No mangá, Posuka nos mostra o quanto as crianças são inteligentes, armando estratégias e emboscadas para os seus inimigos. Investe também no drama e na tensão ao nos colocar em um mundo que parece não ter saída. Na animação, todas as crianças do orfanato acabam recebendo um pouco de atenção. Há um claro investimento nas relações entre eles, em como eles são amigos e irmãos. É uma abordagem mais emocional, mas sem tirar o aspecto da tensão. Se no mangá, o leitor fica curioso para saber qual é a próxima revelação, no anime, ficamos preocupados pela segurança deles. A possibilidade de algum deles morrer é iminente. Até a trilha sonora é trabalhada em cima disso, com o seu ponto máximo nos dois episódios finais da primeira temporada.


Antes de passar a bola e falar da segunda, quero comentar sobre a qualidade da animação e trilha sonora. Ambas são de alto nível. Se a gente pode colocar a culpa em alguém a respeito dessa segunda temporada é no diretor de animação e no próprio autor que fez escolhas erradas. O estúdio Cloverworks é um dos melhores dos últimos anos e é responsável por animes belíssimos como Horimiya que está passando na temporada atual. O design de personagens está impecável, seguindo a linha e a palheta de cores do Kaiu Shirai. Então, na primeira temporada a série é bem colorida, com vários cenários em tons pastéis, de forma a te dar um ar de tranquilidade. Nas cenas com os demônios e a partir da segunda temporada, a animação toma um ar mais sombrio, com cores escuras e cenários claustrofóbicos. Alguns ótimos exemplos são a floresta onde eles encontram Sonju e Mujika e o templo em que eles ficam mais à frente. Existe um bom emprego de animação fluida, tornando os momentos de ação dinâmicos e compreensíveis. Gosto bastante desses momentos, principalmente em como a animação consegue transportar bem as movimentações dos personagens. Sem falar na variedade de designs de monstros.



Posuka Demizu havia dado uma entrevista próxima ao lançamento da animação surpreendendo os espectadores que eram também leitores do mangá. Ela afirmava que havia optado por apresentar uma experiência diferente e que alguns momentos do enredo poderiam acontecer de outra forma ou nem aparecer. Na época, os fãs não deram tanta bola achando que se tratava de uma maneira de criar expectativas com a nova temporada. Talvez uma mudança aqui ou ali só para despistar aqueles que já conheciam. Ou até alterar momentos em que alguns dos personagens se encontravam para dar um ar de imprevisibilidade. Ninguém esperava o que estamos acompanhando. O resultado disso é que hoje o anime sofre diversas críticas seja por aqueles que leram o mangá ou por aqueles que apenas acompanham o anime e o acham bem problemático. Não que esta segunda temporada seja de todo ruim, ela só sofre demais com opções estranhas, soluções saídas do ar e interações que não emocionam o espectador (tirando a do final do episódio 8 que finalmente foi bem conduzida).


Se a primeira temporada se foca bastante na Emma e em como ela é um ponto de ligação para as crianças, essa segunda temporada divide mais os papéis. O problema é que ao dividir, os personagens parecem meio jogados na trama. Por exemplo, Ray não tem a menor importância por vários episódios além de ser uma pessoa próxima da Emma. A própria personagem parece atirada de um lado para o outro sem um rumo certo. Algumas de suas escolhas e decisões não tem o peso emocional necessário para fazer com que a pessoa que está do outro lado se emocionasse junto. Quando ela faz uma escolha entre a paz e a guerra, a opção dela é natural até pela personalidade dela. Mas, quando ela expõe as razões que a levaram a isso, me parecem superficiais demais. Por que ela ajudaria demônios apenas por causa de dois exilados que estão à margem da sociedade e um senhor que ela viu de relance em uma cidade? Esse segundo caso tem uma explicação bem óbvia para os fãs do mangá.


A falta do arco de Goldy Pond. Esse é um arco onde a Emma acaba ganhando um grande protagonismo ao precisar lidar com um acampamento de demônios que gostam de caçar crianças por prazer. Durante esse arco, que é bem longo no mangá, as crianças de Grace Field ficam sabendo de vários detalhes sobre os seus inimigos, como eles se organizam, como são suas cidades e por que eles se alimentam. Emma precisa amadurecer durante esse arco e se transformar na protetora do grupo. Se Ray é aquele cara que consegue bolar ótimas estratégias para se esquivar dos inimigos, Emma é a mãe protetora de todos. E ela assume esse manto com mais solidez durante esse arco. A opção por excluir Goldy Pond e pular um bom número de volumes acabou atrapalhando o ritmo da história que precisa contar em dois episódios como funciona uma cidade de demônios.



No mangá as informações são passadas devagar para criar a tensão nos leitores. Na animação somos imersos em um mar de novas descobertas aqui e ali. É o que chamamos em literatura de info dumping, ou seja, quando você não consegue processar uma quantidade enorme de informações e não sabe onde encaixá-las. Lá pelo episódio 10 as coisas começam a fazer sentido, mas tudo se une com tanta fragilidade que quem está vendo precisa forçar a barra para que seja possível compreender o que está sendo passado. Outro arco que vem depois de Goldy Pond, vê as crianças tendo que fugir do abrigo que elas tinham encontrado. Esse é um arco chamado Cuvitidala, onde as crianças entram em contato com uma figura misteriosa dentro do abrigo que elas encontraram através das coordenadas deixadas por Minerva. Alguns acontecimentos são alterados e a permanência no abrigo é encurtada.


Outro problema foi como determinados reencontros e revelações acontecem. Um dos momentos marcantes da primeira temporada foi a separação de Emma e Ray de Norman. Por muito tempo ficamos achando que o personagem tinha morrido no mangá. A revelação que ele estava vivo acontece vários e vários volumes mais à frente no arco Rei do Paraíso. Na segunda temporada ela acontece cinco episódios depois do ocorrido. Não deu tempo para que o espectador sentisse a falta dele. Não houve tempo para lamentarmos a sua despedida. E isso é fruto de um excesso de velocidade na animação que parece estar correndo contra o tempo. Espero estar errado porque acabei de assistir o episódio 10, mas me parece que a ideia é fechar a série nesta temporada. Porque três arcos foram saltados e o arco do Rei do Paraíso, que é bem importante foi drasticamente encurtado. Já entramos no arco seguinte e fico me perguntando qual é o objetivo afinal? Todo o drama da realização de Emma de que precisaria estar em lados opostos a Norman é posto em dois episódios. Aliás, o episódio 8 é muito maçante. Se passa em dois cenários com os personagens conversando pelo episódio inteiro. E sem qualquer emoção posta na mesa. Me lembro até hoje do poderoso episódio 17 de Re:Zero que se passa em um terraço com Rem e Subaru conversando. Não acontece nada no episódio inteiro, mas a cena é de uma beleza e poder dramático que eu vi poucas vezes. Somos empurrados a entender que Norman é um antagonista e o momento recordatório dele em Lambda se passa em sete minutos. Sete minutos... em que o espectador precisa deduzir boa parte daquilo que aconteceu a ele.


Não sou daqueles que engrossam o coro de que o anime deveria ser jogado no lixo ou que os produtores quiseram ganhar dinheiro de qualquer jeito. Costumo sempre defender que adaptações são sempre diferentes em relação ao material original. Até porque mangá e animação são veículos distintos que possuem suas próprias características. Não podemos imaginar que algo vai ser exatamente adaptado. Mas, a autora correu riscos desnecessários demais ao transformar uma história de alto nível nesse negócio estranho que é a segunda temporada. Sinceramente, não sei se acho legalzinho ou se odeio o anime. Acho até que a autora poderia ter mexido mais para a frente, principalmente no final que não agradou muito aos fãs do mangá. Se ela tivesse investido o seu tempo ali, e oferecido algo mais satisfatório, mesmo que a animação precisasse correr um pouco, seria melhor. Mas, suprimir arcos em prol de um efeito surpresa, não achei legal. Enfim, vamos esperar e ver como esse drama vai se desdobrar.



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