Uma linda autobiografia onde a autora reflete sobre seu papel como mãe e como filha ao mesmo tempo. Suas memórias se mesclam com a narrativa de família originada do Vietnã durante os períodos de guerra.
Chega um momento em nossas vidas em que paramos para refletir sobre nossos papéis para nossos amados. Aquele momento transformador onde tudo entra em perspectiva para que possamos dar nosso próximo passo. E esse momento vem quando Bui decide rever a história de sua família logo após dar a luz a seu primeiro filho. O nascimento é marcante para a família de Bui e principalmente para ela mesma. Enquanto Bui avalia seus sentimentos, ela compartilha conosco as histórias de seu pai, Bo, e sua mãe, Má em meio a momentos felizes, tristes, angustiantes, de sofrimento e de superação. O resultado é uma jornada incrível que passa por dois continentes, nos mostrando a riqueza que existe na relação entre mãe e filha.
Não há mistério na narrativa de O Melhor que Podíamos Fazer. É uma autobiografia e ela vem carregada com os sentimentos de autora/artista. Se trata de uma história da vida real e seu impacto chega até nós como uma lança em nossos corações. Em vários momentos, a história de Thi Bui me remeteu a outra que eu li recentemente, a HQ Heimat, da autora Nora Krug. Nela, Nora também fazia esse percurso de buscar a narrativa de sua família para entender a si mesma em um mundo que cobrava dela um posicionamento (ou ela cobrava a si mesma). Quando se trata de uma narrativa carregada, se torna cada vez mais complicado retirar de nossos parentes os detalhes. Principalmente por estarmos envolvidos em nosso emocional, o resgate da história oral é mais complexo. Assim como Nora Krug, Thi Bui vai coletando pedaços de informação a partir de memórias que são difíceis de serem lembradas, mas que passam para nós valiosas lições.
Para quem está estranhando o formato aqui, não me sinto à vontade de avaliar uma narrativa como a dessa HQ, porque é como se eu estivesse avaliando a vida da personagem. E isso não é um sentimento legal. Posso dizer que, para mim, a narrativa funcionou porque tocou em meu íntimo. Toda a passagem de tocha da mãe para a filha é um momento bonito e dá para perceber que esta é a catarse final da HQ. Quando a mãe deixa seu papel de filha e passa a exercer o de mãe (apesar de ainda manter um pouco da rebeldia filial lá em seu íntimo). A narrativa me toca também porque eu me aproximo da idade de Thi Bui, beirando na casa dos quarenta, então esse tipo de reflexão acerca de montar uma família, o que vou deixar para os meus filhos ou se eles irão cometer ou não os mesmos erros que eu, são pensamentos que volta e meia vem à minha mente. Será que eu vou ser um bom pai? Conseguirei transmitir boas mensagens? Assim como a orelha de capa nos coloca, é impossível que você, leitor, não chore em algum momento. Seja com os horrores da guerra, com a difícil travessia para a Malásia ou a adaptação a um novo mundo.
O que faz desta história tão bacana é o quanto a autora conseguiu transportar as características de seus pais para a HQ. Não estamos diante de personagens ou estereótipos; são pessoas reais com qualidades e defeitos e toda uma vida por trás de cada um deles. Por exemplo, vemos o quanto os traumas do passado de Bô o tornaram um pai imperfeito, negligenciando suas filhas em determinado momento, mas fazendo o possível para lhes dar saúde e alimentação. O quanto as diferenças entre Má e Bô os afastaram um do outro no casamento, mas mesmo assim eles continuam próximos um do outro. Ou o quanto Bui pode ser muito teimosa em algumas de suas posições sem entender o que seus pais querem, no fundo, dizer. E o mais legal: mesmo sendo uma família grande, eles conseguem ser unidos. As terríveis experiências pelas quais eles passaram serviram como uma cola que uniu pessoas que se tornaram tão diferentes à medida em que foram crescendo e tendo outros interesses.
A autora traz ricas informações sobre a vida no Vietnã durante as décadas de 1940 a 1970. Lógico que essa é a visão de alguém que sofreu perdas e sofreu bastante com as constantes mudanças políticas e sociais ocorridas na velha Indochina. Esse é mais um caso de um país que foi afetado pelo imperialismo que colocou este lugar primeiro nas mãos dos franceses e passou para as mãos de um ditador comunista. Assim como vários outros lugares do Leste Asiático como o próprio Camboja citado durante a HQ que simplesmente passou pela administração de uma "milícia" comunista conhecida como o Khmer Vermelho. E o Khmer devastou o Camboja por mais de trinta anos até eles conseguirem encontrar forças para se libertarem do domínio socialista. Vocês me perguntam então: todo o país socialista foi uma ditadura? Não necessariamente. Mas, os exemplos mais visíveis surgidos durante a Guerra Fria são bem complicados de se defender como a ditadura de Pol Pot, no Camboja ou a guerrilha de Ho Chi Minh no Vietnã. Pessoas como a Bui que tinham uma vida razoavelmente adaptada ao domínio francês se viram pegas em um tiroteio entre capitalistas e socialistas que usaram o cenário do Vietnã para realizar sua guerra ideológica. Como sempre, são os inocentes que pagam o preço.
A narrativa que se faz desses momentos é cercado de um romantismo que os vietnamitas não entendem. Filmes como Platoon e Apocalypse Now vieram no esteio da condenação de uma guerra entre soviéticos e americanos. Mas, e aqueles que moravam em Saigon? Um dos momentos mais tristes da história do Vietnã é a entrada das forças vietcongues em Saigon decretando a derrota dos americanos em uma longa e infrutífera guerra. A questão não é quem estava certo ou errado. A história de Bui, apesar de sofrida, acabou ocasionando um final feliz em outro continente. Mas, para cada final feliz existem dez outros casos infelizes. Não é que o regime francês fosse melhor que o socialista. É simplesmente que quem vivia sob o regime francês passou a ser considerado cidadão de segundo escalão. E, o regime vietcongue acabou adotando aquilo que havia de pior no stalinismo: a espionagem e a paranoia.
Uma velha máxima da Mãe História é que ela é contada pelos vencedores. E é bom de vez em quando ver um lado da história que não foi contado. Ao mesmo tempo as dificuldades e obstáculos que Má e Bô passaram são terríveis. Vendo o quanto eles são articulados e cheios de recursos, percebemos o quanto a vida deles poderia ter sido diferente em outro contexto. A gente fica naquele exercício eterno do "E se...". Ao mesmo tempo é maravilhoso ver o quanto o espírito dos dois não foi quebrado mesmo diante de recusas, de abandonos, de relegações e de sacrifícios. Faz a trajetória dos dois ganharem contornos épicos. Afinal, era o melhor que eles podiam fazer pelos filhos, em um trocadilho com o título da HQ.
A conclusão que eu chego é que essa era uma história que precisava ser contada. E Thi Bui a conta de uma maneira artística e elegante. Não falei ainda da arte, né? Ela segue um padrão de linhas claras que lembra a arte europeia. Mas, Bui emprega algumas cores além do preto e branco, o que dá uma personalidade única ao quadrinho. Se a missão era emocionar, Bui conseguiu fazer isso aos montes. Só tenho a recomendar essa história e eu acredito que deva entrar para as minhas melhores leituras do ano. Tem o potencial e aquele poder narrativo para isso.
Ficha Técnica:
Nome: O Melhor que Podíamos Fazer
Autora: Thi Bui
Editora: Nemo
Gênero: Não-Ficção
Tradutor: Fernando Scheibe
Número de Páginas: 336
Ano de Publicação: 2017
Link de compra:
*Material enviado em parceria com a editora Nemo
Sinopse: Esta é uma história de busca por um futuro melhor e de saudosismo pelo passado. Explorando a angústia da imigração e os efeitos duradouros que o deslocamento tem sobre uma criança, Bui documenta a difícil fuga de sua família após a queda do Vietnã do Sul, na década de 1970, e as dificuldades que enfrentaram para construir uma nova realidade. O melhor que podíamos fazer traz à vida a jornada de Thi Bui em busca de compreensão e fornece inspiração a todos aqueles que anseiam por um futuro melhor, enquanto recordam o passado de privações.
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