Durante a pandemia dois irmãos precisam lidar com uma nova realidade. Um é louco por redes sociais e a irmã quer ser uma escritora. Carlos cria uma personalidade nova nas redes sociais que causa muito burburinho enquanto lida com o fato de que a mãe está longe.
A pandemia de covid-19 nos fez ficar em nossas casas, isolados do mundo. Enquanto a quarentena durava, precisamos descobrir novas maneiras de nos comunicar, de sairmos de nossas ilhas de isolamento e alcançarmos o mundo. Foi nesse momento que muitas personalidades, reais ou virtuais, surgiram. Seja no Facebook, no Twitter, no Instagram, no TikTok. Aonde quer que fosse. Nesse período agonizante, nossas relações familiares também foram testadas porque precisávamos estar o tempo todo junto deles. Se não os compreendíamos antes, esses problemas, essas lacunas, ficaram ainda mais evidentes. Em Você não é Invisível, Lázaro Ramos nos traz uma família que está tentando sobreviver a essa loucura, enquanto lida com os seus próprios problemas. O autor faz isso de uma maneira singela e ao mesmo tempo bastante reflexiva.
"A palavra é uma espécie de ponte construída entre mim e os outros. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor."
(Mikhail Bakhtin)
O tema desta matéria é a variedade de formas que usamos para nos comunicar. E não poderia começá-la sem destacar a originalidade do projeto de Lázaro. Caramba, o quanto é legal pensarmos o quanto a escrita literária pode se reinventar a cada momento. No livro, Lázaro usa de uma variedade de modelos textuais para entregar sua história. A narrativa não é linear no sentido gráfico da coisa, com subversões aqui e ali. Lázaro mescla os modelos de texto do Twitter, de áudios de celular textualizados, de trechos do caderno da menina, de playlists no Spotify. O texto assume uma tridimensionalidade que oferece múltiplas camadas de compreensão para o leitor. Gosto de como o autor pensa a maneira como ele precisa entregar o texto para quem está lendo. É isso que eu chamo de comunicação múltipla porque vamos precisar pensar fora da caixa para compreender a narrativa toda. Se juntarmos as cartas da mãe de Carlos e Vitória, isso cria toda uma nova compreensão. Convido os leitores a lerem o livro ouvindo a playlist proposta. Música e texto se complementam para nos oferecer mais do que uma leitura, mas uma experiência. Os leitores vão me perguntar se tantas formas de comunicação truncam a leitura, e digo que não. Só tornam a leitura mais dinâmica. Devorei esse livro em duas sentadas e foi bastante prazeroso. Como alguém que gosta desse tipo de experimentação, foi um sopro de ar fresco. Aliás, fecho este parágrafo acrescentando mais uma forma de comunicação que são as imagens. Tem várias delas espalhadas pelo livro, cortesia de Oga Mendonça, o ilustrador que nos presenteia com imagens fortes.
A história é simples e creio que muitas famílias tenham passado por ela. Carlos é uma mente inquieta e durante a pandemia sua rotina precisou mudar. Seu pai é um homem quieto e de poucas palavras e sua irmãzinha vive querendo ser doce e gentil, ao mesmo tempo em que escreve seus livros. Abraços? Eca. Alguém de quem ele sente falta é de sua mãe, uma doutora em Antropologia que está viajando pelo mundo, fazendo sua carreira, como diz seu pai. Mas, a saudade dá um aperto no coração e o torna alguém incomodado com o mundo. Suas postagens nas redes sociais não tem gerado visualizações, ele terminou com sua paquera Iza Dora e agora não sabe que rumo tomar. É então que durante uma de suas lives, ele conta uma das histórias de seu tio Ivan e isso gera engajamento. É então que ele cria um novo perfil chamado IvanOEST que serve como uma versão mais crua de si mesmo com quem ele poderia conversar. Seu perfil é ele mesmo usando um saco de papel com uma interrogação e um buraco na boca. Em suas lives, IvanOEST é uma versão sem filtro, o que faz com que outras pessoas se sintam conectadas com ele, mesmo que isso exija muito dos sentimentos dele. Ao mesmo tempo em que precisa lidar com sua súbita fama nas redes sociais, ele vai descobrindo fatos sobre sua família que o transformam para sempre.
Começando pelo próprio Carlos, ele está em busca do engajamento. De que maneira ele poderá alcançar um maior número de pessoas? Ele vai usando múltiplas estratégias para isso: usando ironia, fazendo bullying com a irmã, invadindo espaços. Nada disso funciona. Até que ele cria sua nova personalidade. De certa forma, Lázaro nos mostra o quanto as redes sociais podem ser o lar tanto do bem como do mal. Ela tanto pode nos incentivar a sermos pessoas melhores, como revelar o pior do ser humano. A criação de Carlos era para ser uma fuga para ele mesmo, mas acaba se tornando um algo mais. No começo ele tenta controlar o discurso, fazendo um apelo por ação, para que as pessoas deixem o seu comodismo e tentem ser mais ativas. Mas, existe uma linha fina entre o que você está falando e o que os outros estão compreendendo. Uma vez que um texto se concretiza, ele deixa de ser uma criação do autor e se torna uma criação coletiva. Isso porque um autor não tem controle sobre o que outras pessoas irão interpretar. O personagem tenta de tudo para explicar suas intenções e isso só o faz ser "cancelado". Ao final, será o próprio texto mal interpretado de IvanOEST o responsável por uma situação bastante constrangedora. E aí ao final quando Carlos tentar ser verdadeiro consigo mesmo e com aqueles que o acompanham, ele é rechaçado por aqueles que o acompanhavam por voltar a ser quem ele era.
Vitória é uma menina à moda antiga. Gosta de escrever seus textos, é uma leitora que busca escapar da realidade através da fantasia. Mas, sua realidade se abate sobre si e em seus escritos, partes de sua vivência transparecem. Alguns dos clichês são tão clichês que não correspondem às suas experiências, fazendo com que ela questionasse suas leituras. Ela tenta ser a mediadora das relações em casa, se colocando como alguém que cuida de seu pai e de seu irmão. Mesmo sendo rechaçada o tempo todo por seu irmão que vê sua preocupação como um grude. Ela também sente falta de sua mãe, mas tenta ser compreensiva, matando saudades através dos relatos das viagens dela que chegam através dos correios. Sua relação com o irmão é testada, mas a forma como ela é verdadeira em seus textos, mesmo através de uma estética poética e fantástica, eles conseguem alcançar o seu coração. O curioso é que Vitória está o tempo todo atenta ao irmão, parecendo mais como uma irmã mais velha do que mais nova. Quando é ela quem precisa de carinho, seu irmão sai de uma casca dura para se revelar alguém atencioso e amoroso a ela.
"Sem a linguagem, o pensamento é uma nebulosa vaga, inexplorada."
(Ferdinand de Saussurre)
Essa pequena pérola de leitura pode ser uma boa pedida para autores que estão desejosos de entender como podem inovar na leitura. Esses múltiplos formatos de se relacionar com o leitor podem gerar saídas interessantes sejam em universos contemporâneos ou até em mundos de fantasia. Por exemplo, poderíamos ter uma narrativa com base em oráculos de imagens, cartas enviadas, trechos de diário, até canções. Lázaro varia também da prosa à poesia e até aos textos curtos do twitter. Todos possuem sua própria maneira de se dirigir ao seu público. As páginas de caderno de Vitória representam um modelo mais analógico, mas ao mesmo tempo mais emotivo e metafórico de escrita. Os áudios de Carlos são mais impessoais e sem um padrão perceptível. As cartas de viagem de sua mãe tentam apresentar parte das experiências em que ela viveu enquanto transporta pedaços de seus sentimentos aos seus filhos. Todas são formas comunicativas são interessantes e diferentes. Demonstram os limites de nossa compreensão, de como a linguagem pode ser subjetiva, emotiva e transgressional. Não devemos pensar que a escrita está ultrapassada, mas em como podemos inovar com algo que já existe há milhares de anos. E é isso que faz da literatura algo tão fascinante. Convido vocês a conhecerem a família de Carrinho neste excelente livro de Lázaro Ramos que pode ser lido por pessoas de todas as idades.
Referência:
Nome: Você não é invisível
Autor: Lázaro Ramos
Ilustrador: Oga Mendonça
Editora: Objetiva
Gênero: Young Adult
Número de Páginas: 112
Ano de Publicação: 2022
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*Material recebido em parceria com a Editora Objetiva
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