Primavera Silenciosa foi escrito há mais de meio século e o impacto deste livro para as discussões sobre o impacto da ciência para o combate à desinformação continuam atuais.

Primavera Silenciosa é um livro que foi publicado em 1962 por Rachel Carson. Foi concebido como uma denúncia ao uso de DDT e outros agrotóxicos e como estes prejudicavam o meio ambiente. A atuação de Carson como ativista vai desde a década de 1930 e 1940, mas ela nunca teve a atenção total da academia e de outros órgãos estatais. Chegou a escrever outros livros como Sob o Mar-Vento no qual procura usar seu conhecimento como bióloga marinha para conscientizar as pessoas sobre a importância da vida dos animais que vivem nas áreas costeiras. Carson possui um dom para escrita que se ela escrevesse nos dias de hoje teria um espaço muito maior. Mas, coube a ela uma missão mais importante: ser uma das primeiras ativistas ecológicas a atacar de frente as grandes empresas poluidoras. Primavera Silenciosa teve um impacto gigante na maneira como os norte-americanos passaram a enxergar o emprego de agrotóxicos. Obviamente que não foi uma ação que deu um resultado imediato, pois o lobby do agro nos EUA é tão grande quando aqui no Brasil. Mesmo hoje ainda existe uma enorme existência principalmente nos estados americanos mais tradicionais. Só que foi graças a ela que o DDT foi praticamente reduzido a uns poucos transgressores. Nessa matéria queria comentar um pouco sobre Primavera Silenciosa e fazer alguns paralelos aos dias de hoje.
Talvez o paralelo mais óbvio seja o do emprego da ciência como alerta para ações prejudiciais ao meio ambiente ou à saúde do homem. Desde a Revolução Industrial, o processo produtivo foi sendo ampliado exponencialmente. Saímos de um sistema artesanal onde um sapateiro produzia um ou dois sapatos por semana para uma linha de montagem onde centenas são produzidos por hora. Enquanto o processo sofria transformações, nunca paramos para pensar nas consequências disso. Seja para a mão-de-obra humana empregada ou no que era despejado como lixo no meio ambiente. A imagem de uma Londres ou de uma Paris no século XIX tomada pela fumaça das indústrias, o lixo nas ruas e a miséria por toda a parte ainda causa calafrios. Mark Twain conseguiu retratar com uma fidelidade assustadora esse clima de desalento em romances como David Copperfield ou Grandes Esperanças. Não era o objetivo dele ter uma abordagem ecológica, até porque não era uma forma de pensar em sua época, mas claramente o autor apresenta uma Londres na qual ninguém desejaria morar. Curiosamente seus personagens alcançam a felicidade quando saem do grande centro urbano e obtém uma vida mais pacata. Chegamos ao século XX e os rejeitos industriais se multiplicavam. Não é coincidência a epidemia de gripe espanhola após o final da Primeira Guerra Mundial sendo que ela provocou alterações ambientais terríveis seja para a escavação de trincheiras ou a derrubada de árvores para construções de abrigos ou outras necessidades dos soldados.
É preciso destacar também que data da Primeira Guerra o emprego mais comum de substâncias tóxicas em diversas áreas de atuação: gases, compostos químicos, diluentes. A ideia de empregar o DDT veio de uma necessidade do agro de ampliar sua produção anual. Os fazendeiros não queriam mais ser vítimas de pragas, desejando maximizar sua produção com o mínimo de esforço. É a mentalidade industrial sendo redirecionada para a agricultura e a pecuária. Só que, como Carson aponta, os efeitos colaterais de substâncias como a clordecona e tantos outros é a destruição da fauna e representava também até mesmo um perigo para o homem que consumia alimentos que haviam recebido tratamento com agrotóxicos. Os casos de moradores de determinadas comunidades espalhadas por todo o país que processavam fazendeiros ou empresas se tornavam cada vez mais numerosos, mas isso era abafado pelos grandes interesses empresariais. As pesquisas científicas sobre os efeitos nocivos destas substâncias representavam um golpe para tais interesses, desagradando aqueles que queriam maior produtividade. Os resultados de tais pesquisas eram inegáveis. Só que o capitalismo não deseja a conscientização, e sim o lucro selvagem. Quando Carson começou a discursar no Congresso e a publicar seus dados em grandes veículos de informação, estes indivíduos se incomodaram. E isto se deu porque essa era uma verdade que estava sendo atirada na cara dos contribuintes, despertando a atenção para um assunto que o agro se esforçou para colocar para debaixo do tapete. Carson teve uma atuação tão importante que data da década de 1980 as leis de controle de agrotóxicos. Essas leis demoraram para serem colocadas em prática, mas se deve a ela esta mudança de mentalidade.

Carson também apontou os efeitos nocivos de tais substâncias na fauna e na flora. Confesso que achei esse ponto mais importante do que o homem provocando câncer em seus semelhantes. Afinal, estamos falando de milhões de animais e plantas que foram afetadas porque fomos inconsequentes. Carson apontou a importância de observar como a introdução de elementos alienígenas a um ambiente pode causar o desequilíbrio ambiental. Costumamos traçar o quanto sua pesquisa destacou os efeitos dos agrotóxicos, mas suas falas vão além disso e nos fez observar com mais atenção o que nos cerca. Ela não foi a única a falar desse assunto já que o tema ecológico começava a ganhar mais forma na década de 1960, mas chama a atenção como a autora era observadora e conseguia pensar fora da caixa. Hoje discutimos a importância dos animais polinizadores como algumas moscas e abelhas, mas na época de Carson esse era um assunto bizarro, para dizer o mínimo. Só que biólogos como ela começavam a perceber as alterações que a nossa exploração selvagem fazia na fauna e na flora. Não paramos para pensar, na época, o quanto a difusão de substâncias nocivas poderia alterar a composição química do solo e produzir árvores mais frágeis ou incapazes de se reproduzirem. Como o desaparecimento de espécies de beija-flores ou de pequenas aves ou insetos poderiam mudar a estrutura de um ecossistema. Seja revelando pragas ou modificando a dinâmica que fazia de um determinado local um ambiente equilibrado.
Nos dias de hoje, temos pesquisas geniais como os de Anna Tsing que mostram o impacto de uma espécie estrangeira em um habitat ao qual ela não fazia parte. Ao pesquisar sobre os matsutakes, cogumelos que nascem a partir da própria alteração que o homem realiza no meio ambiente, Tsing nos aponta o quanto precisamos pensar de maneira mais ampla. Uma simples espécie de besouro pode ser fundamental para manter a estrutura da cadeia alimentar de um ecossistema. Quando retiramos uma variável importante da equação, não temos como saber como a natureza irá responder. Carson nos apresenta diversos casos ao longo do livro. Por exemplo, ela apresenta em um capítulo o que aconteceu a uma comunidade do sul dos EUA que decidiu eliminar uma espécie de formiga apenas porque elas eram incômodas. As formigas lava pés eram o alimento de outro inseto que também foi afetado indiretamente pelas alterações feitas. O resultado final foi a propagação de uma espécie de insetos que era nociva ao homem e as macieiras que não tinham mais os animais que faziam parte do seu processo de maturação.
Se trazemos isso para os dias de hoje, podemos refletir sobre como doenças mortais como o Covid ou o Ebola surgiram a partir do desmatamento desenfreado provocado pelo homem. Carson comenta sobre as moscas tsé tsé, que provocam a doença do sono, que antes eram limitadas ao interior das florestas tropicais da África central e que passaram a entrar no raio de cidades no Congo, na RCA ou em outros países da região. São animais que acabam precisando buscar alimento fora de sua origem e invadem outros ecossistemas. Eliminá-los pode ser importante para prevenir a doença, mas qual será a consequência disso? Algo pior? Quando mencionamos estas situações que são tão atuais, percebemos a importância da atuação de Carson. Temos dificuldade ainda de compreender o lugar que vivemos de uma maneira mais ampla. O quanto mudar qualquer coisa pode provocar um efeito dominó imprevisível. Mais do que isso: que a natureza funciona de acordo com suas próprias regras. Por muito tempo nos achamos os criadores e controladores da natureza. Hoje começamos a ver que as coisas não funcionam nessa direção. A natureza segue suas próprias regras; seja conosco ou sem nós.

Um último ponto que vale mencionarmos é o quanto ainda precisamos enfrentar o interesse do grande capital. E como a própria Carson pontua em Primavera Silenciosa, havia uma enorme indústria produtora de agrotóxicos que tinha interesse na produção em massa de DDT, clordecona e seus derivados. Ao bater de frente com essas empresas, Carson colocava a própria existência delas em xeque. Na visão dela, a indústria precisava ser extinta já que o uso dessas substâncias era prejudicial em vários níveis ao meio ambiente. Ela demonstra, através de seus estudos, como soluções naturais e não invasivas tiveram um índice de aproveitamento muito maior e com menos oneração. E ela demonstra isso por A+B o quanto o interesse no uso de substâncias tóxicas não faz sentido do ponto de vista econômico. Ainda hoje temos os mesmos problemas com os lobbys do agro no poder Legislativo. Durante o governo Bolsonaro houve a aprovação do uso de inúmeras substâncias agrotóxicas que tem alto grau de periculosidade. Mesmo o controle dos que já existem e são perigosos como o malatião não é bem regulamentado. Um cidadão comum pode adquirir uma grande quantidade do produto apenas para cuidar de seu jardim. Outros lobbys envolvem a grilagem de terras, o corte indiscriminado de árvores, provocando a erosão de uma região ou até a exploração mineradora usando métodos ilegais. Por sorte temos muitas Rachel Carsons espalhadas pelo mundo, pensando e refletindo sobre o mau uso de agrotóxicos e outros rejeitos deixados no ambiente. A luta vai continuar e precisamos nos conscientizar sobre os riscos que a natureza tem sofrido hoje; precisamos priorizar produtos agrícolas cujo plantio e cuidado tenha passado por processos orgânicos, não invasivos; denunciar quando uma empresa emprega métodos questionáveis. Ou seja, exercermos nosso papel como cidadãos questionadores que cobram do poder público medidas contra os interesses selvagens e inescrupulosos do grande capital. É uma luta difícil, mas necessária para a nossa própria sobrevivência nesse planeta.
Bibliografia Mencionada:

Ficha Técnica:
Nome: Primavera Silenciosa
Autora: Rachel Carson
Editora: Global
Gênero: Não-Ficção
Tradutora: Cláudia Sant'Anna
Número de Páginas: 328
Ano de Publicação: 2010
Link de compra:
Sinopse: Produto da inquietude de Rachel Carson, "Primavera silenciosa" desafiou a sabedoria de um governo que permitia que substâncias tóxicas fossem lançadas no meio ambiente antes de saber as consequências de seu uso a longo prazo. Por meio de uma linguagem simples e usando informações a respeito das radiações atômicas, Carson descreveu como os inseticidas alteravam os processos celulares das plantas, animais e seres humanos. Um livro para saborear: não pelo lado sombrio da natureza humana, mas pela promessa de possibilidade de vida.

Comments