Neste Dia do Mestre, gostaria de refletir sobre como a formação de novos leitores está diretamente atrelada à recuperação do mercado editorial.
Todos os anos o Instituto Pró-Livro realiza uma pesquisa de foco nacional buscando analisar os hábitos de leitura em diversas idades. Quem lê, o que lê, quanto consome por mês em livros, quantos livros lê por ano, quando começou a ler. É uma pesquisa ampla e que se encontra em sua quinta edição (acessível por esse link). A cada ano que passa ficamos cientes de uma realidade inexorável: o Brasil está perdendo leitores. Com as crises econômicas sucessivas e o poder aquisitivo das classes C e D diminuindo, sobra pouco espaço para hábitos supérfluos como a leitura. É fato que quando o cinto aperta, a cultura é a primeira a ser cortada por não ser necessária à sobrevivência.
Sou professor de História e Sociologia e há mais de três anos atuo com formação de leitores na escola. Trabalho com turmas que vão desde o ensino Fundamental II até a Educação para Jovens e Adultos. Ao final de cada ano letivo me convenço que formar novos leitores é mais e mais difícil. Isso porque se torna fundamental explorar a imaginação e a capacidade de criar novos cenários; porém disputamos espaço com ferramentas mais imediatas como a internet e as redes sociais. Os nossos alunos de hoje não tem mais o poder de concentração de seus antepassados. E não digo isso nem me referindo a um passado distante, mas à minha geração dos anos 80 e 90. Ou seja, pouco mais de vinte anos separam a minha geração da atual. O resultado disso é menos leitores sendo formados a cada ano letivo. E isso começou a se refletir para o mercado editorial que não teve renovação alguma.
Sempre alerto para a redução de leitores. Afirmo com convicção que o hábito de leitura está ficando para trás. E os questionamentos de intelectuais sempre surgem. "Mas como está reduzindo se existem cada vez mais pessoas lendo nos transportes públicos?". Geralmente uso a expressão "percepção é realidade", mas nesse caso não é. Temos uma falsa impressão de aumento, mas isso se reflete apenas em grandes centros urbanos e com núcleos que possuem melhores condições para adquirir um livro mensalmente. Só que a minha afirmação vem da minha experiência em centros urbanos pequenos e médios onde o poder aquisitivo é bem menor. E, onde eu vivo o cenário é bem mais apocalíptico. É raro encontrar alguém lendo dentro dos transportes públicos daqui, seja ele trem, ônibus ou BRT. A gente tende a pensar sempre em números absolutos e, de fato, se pensarmos dessa forma, aumentou o número de leitores. Porém, para uma pesquisa como a Retratos da Leitura, importam os números relativos. Na minha geração, o Brasil era formado por 160.000.000 de habitantes; na atual somos mais de 200.000.000. Para haver um real aumento de leitores, teríamos que ter aumentado a quantidade de leitores em função da quantidade total de habitantes. E isso não aconteceu. O número absoluto aumentou, mas em relação ao total ele se estagnou.
É muito fácil pregar leitura para quem está predisposto a ler. Para aquele adolescente ou jovem adulto que já tem a propensão a pegar um quadrinho, um mangá ou uma história infantil. Não há trabalho real. Você só precisa apresentar a opção. Só que a maior parte é mais refratária a esse tipo de opção de entretenimento. A maioria prefere uma forma mais imediata de diversão enquanto que um livro exige preparação, vocabulário, imaginação. Somos bombardeados diariamente por milhares de informações visuais e sonoras. Estas não permitem que a gente imagine, elucubre, deduza. São materiais que já possuem as respostas prontas. Não é impossível convencer alguém não propenso a ler a embarcar nesse mundo. Só é duplamente mais complicado.
Em um mundo ideal a formação de leitores deveria ser feita na escola. O currículo de Língua Portuguesa é repleto de conteúdos que exploram as habilidades e competências da leitura. Seja através do estudo das formas, dos gêneros, dos estilos, dos discursos. Se pegarmos para ler o currículo da disciplina, vamos imaginar que estamos em um mundo ideal onde tudo funciona. Só que isso não se reflete nas práticas pedagógicas. Falta incentivo governamental. falta uma justa remuneração e falta até vontade do professor. Afinal, que professor que recebe mal vai investir em se esforçar para trabalhar tais habilidades em um aluno? Como eu disse no parágrafo anterior, formar leitores não propensos é uma tarefa árdua e que exige envolvimento e sentimento. Na rotina massacrante da escola onde o professor é educador/pai/psicólogo/confidente/lutador, isto se torna inviável. Claro que existem guerreiros que insistem em furar uma pedra usando água mole, pessoas como eu. Só que não existem muitos nessa posição.
A realidade é que a escola forma ainda menos leitores hoje. Geralmente eu me satisfaço se conseguir formar seis novos leitores todos os anos. Isso em um universo de mais de duzentos alunos novos todos os anos. Mas, existem anos que nem seis eu consigo formar. Esse cenário tem se refletido em uma geração pouco preparada para os desafios impostos pelo universo do trabalho. Ler fornece compreensão de mundo, capacidade crítica, aumento de vocabulário, habilidade interpretativa. O que nos deparamos é com uma população mal preparada, que aceita o senso comum como informação verídica ou até falseia ou distorce informações para se enquadrar dentro de seus desejos. O brasileiro é uma mão-de-obra cada vez menos especializada. Não digo que todos devam ler ficção científica ou fantasia, mas que devam ler como uma forma de compreensão de mundo. Pode ser um romance ou um livro de auto-ajuda, o importante é construir essa bagagem cultural que nos dará opções quando sairmos do universo escolar.
E essa perda de novos leitores acaba se refletindo no mercado editorial. Estes já não integram novos quadros. Com isso o mercado editorial não se renova. O que parecia um cenário estranho há dez anos atrás, com pessoas entendendo que isso se tratava de algo passageiro, hoje é uma realidade complexa e difícil de ser superada. As editoras dependem da manutenção de um contexto pré-existente. Que os leitores atuais continuem consumindo livros, isso em um cenário de forte recessão em que a entrada de novos consumidores seria mais importante do que a manutenção dos atuais. Desde 2016 as editoras entraram em um buraco negro de vendas que parece não ter saída. E se o contexto sócio-econômico não mudar, a tendência é que esse cenário só se agrave. Quem parece ter tido uma sobrevida são as editoras de quadrinhos, considerada uma porta de entrada para novos leitores. E isso mesmo com essas editoras se tornando altamente gourmetizadas. Mesmo assim elas conseguiram se reinventar.
A saída ideal seria um reforço nas iniciativas governamentais voltadas para a educação. Mais políticas públicas e a criação de planos de metas para a formação de leitores. Só que dentro desse governo autoritário e conservador atual, onde saúde e educação são para tolos, esqueçam. Vai raiar o dia em que o presidente pensar em alguma política educacional que seja minimamente decente, quanto mais inteligente. Restam as iniciativas privadas. As editoras precisam esquecer a existência de um governo e partir para resolverem elas mesmas o problema. Até porque se trata de uma questão de sobrevivência. Nesse cenário, acredito que as editoras devam chegar ao seu extremo em um período de três a cinco anos. Quando a quantidade de leitores será irrisória para a manutenção de uma indústria de publicações.
Enxergo a necessidade de investir fora da caixinha. Buscar o apoio de personalidades públicas e populares, fora do nicho literário. Investir em propagandas na televisão, seja de forma direta ou indireta. Aliás, fica aquele alerta: já passou o tempo de associar lançamentos literários ao cinema. Isso não funciona mais. Até porque a indústria de Hollywood quase não trabalha tanto com roteiros originais, preferindo adaptá-los. Menos trabalhoso e mais simples. Outra possibilidade é se focar em influenciadores que lidem diretamente com a formação de leitores. Afinal, nem todo bookstragramer é formador de leitores. Tipo, aquela menininha engraçadinha e fofinha que passa blush no rosto e comenta sobre a sua última leitura (que na verdade ela apenas copiou a sinopse ou o press release da editora) não basta; muito menos aquele rapazinho engraçadinho que passa gelzinho no cabelo e tem uma tatuagem exótica no meio da testa. Sejamos sérios, né, editoras. O tempo disso passou também. Todas as semanas surgem mais de dezenas de canais no youtube, no twitter ou no instagram. Por mais que tenhamos leitores em potencial espalhados pelo Brasil, não há espaço para todos.
Nesse Dia do Mestre o meu desejo é por dias melhores. Dias melhores para todos, seja na indústria editorial ou não.
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