Em mais uma matéria sobre o Setembro Amarelo, reflito sobre as características dos casos de suicídio no país que sediou as olimpíadas neste ano e suas relações com a ficção.
Mesmo os jogos olímpicos de Tokyo tendo sido adiados no ano passado, eles ocorreram há alguns meses atrás, ainda no contexto de enfrentamento à pandemia da COVID-19 em 2021. O evento esportivo mais conhecido no mundo atraiu a atenção deste país de cultura exótica a nós, ocidentais, inclusive aqueles que tem pelo menos alguma influência de lá, seja se inspirando na cultura do sempre esforçar e dar o melhor de si (ganbatte) ou por curtir produções populares (anime, mangá, dorama, jrpg...). A mídia brasileira produziu várias matérias sobre o país sede das olimpíadas, e assim pôde atiçar muitos de nós a experimentar seus pratos (indo além do sushi e entendendo melhor o rámen). Talvez até arriscar a aprender o idioma e aquele labirinto alfabético de hiragana, katakana e kanji.
Já entre os leitores do Ficções Humanas, acredito ter também aqueles interessados em escrever histórias inspiradas na cultura japonesa, cuja mitologia é capaz de fornecer novas ideias, ou se inspirar nos aspectos tecnológicos e explorar as interações entre humanos e robôs já existentes hoje, sem falar dos períodos históricos capazes de representar tramas cheias de samurais. Mas ainda há o aspecto do suicídio (seja o ritual ou o decorrente de problemas sociais) presente em qualquer dessas ambientações . Estando no mês do Setembro Amarelo, pretendo neste artigo abordar o assunto no trabalho de ficção, trazendo as particularidades vividas no Japão e as possíveis influências decorrentes da representação desta prática.
A realidade recente no Japão
Começo falando da situação atual do Japão por meio do estudo que analisou as taxas de suicídios durante a pandemia no país e sua possível relação com o vírus. Quando o coronavírus começou a contaminar os cidadãos e o governo adotou medidas preventivas — redução da jornada de trabalho, interdição das atividades nas escolas, além de oferecer subsídios aos que necessitavam de renda —, houve queda de 14% nas taxas de suicídio. Lembrando que o Japão demorou a tomar medidas de isolamento, com medo de isso prejudicar a economia e atrapalhar o início dos Jogos Olímpicos. A decisão de adiar a competição veio poucos meses antes do que seriam os Jogos em 2020. Por conta dessa resistência a doença persistiu por lá tal como no resto do mundo. Com isso ficou difícil de sustentar o subsídio à população em um longo prazo, o desemprego aumentou, além da constante demanda dos serviços domésticos das mulheres naquele país de tradição patriarcal. Some a isso a chegada de uma segunda onda de casos por lá, causando o crescimento do número de suicídios em 16%. Os autores do estudo citado acima lembraram ser improvável atribuir um fator único na tentativa de encerrar a própria vida, e ainda assim veem a associação da pandemia, afinal ela por si carrega inúmeros outros problemas difíceis de lidar. Somente daqui a alguns anos seremos capazes de avaliar a real extensão dos efeitos da pandemia sob um aspecto social, analisando suas consequências e mudanças. Se formos pensar a partir de um espectro econômico, ainda mais no longo prazo. Mas, o estudo nos ajuda com algumas conclusões preliminares.
Os dados presentes no artigo refletem o quanto crianças e mulheres foram os mais afetados pelo confinamento, retrata crise de ser incapaz de dar o melhor de si por estar desempregado e o quanto a pressão escolar ou no trabalho interfere no bem-estar de uma pessoa japonesa. Tudo isso ainda é apenas uma pequena amostra presente neste levantamento. Mesmo no Brasil detectamos um aumento nos casos de violência doméstica e contra a mulher, casais incapazes de manter a união devido ao confinamento e o desespero decorrente das dúvidas e inseguranças acerca do que estaria por vir. Do ponto de vista do escritor, é possível abordar o suicídio a partir desses mesmos temas (da crise, da pandemia, da falta de autoconfiança), só necessitando de um cuidado na representação, evitando subestimar o ato suicida a um só fator ou afetar o leitor de maneira negativa na cena da tragédia. Além disso, não esqueça de incluir alguma nota ou informativo no começo da história a respeito da presença de gatilhos ligado ao suicídio. Tal prática se tornou comum nos últimos anos a partir de uma conscientização maior das editoras quanto ao impacto que uma representação desses temas pode ter naqueles que tem algum tipo de fragilidade emocional. E mais: avisar sobre gatilhos não é frescura ou inutilidade, mas um serviço de respeito ao seu leitor ou leitora.
O suicídio na ficção japonesa
O documentário Saving 10000 - Winning a War on Suicide in Japan trata sobre um imigrante irlandês apaixonado pela cultura japonesa e ao mesmo tempo transtornado pela alta incidência de suicídio no país, com uma taxa de 30000 ao ano durante a elaboração do documentário. Em meio a entrevistas de especialistas e cidadãos sensibilizados pelo tema, alguns chamaram atenção sobre haver muitos romancistas japoneses que tiraram a própria vida nas últimas décadas, e mesmo sendo de outra profissão, os parentes e pessoas próximas do suicida sabiam que o sujeito lia algum romance com cena do tipo. Lembremos também do caso do autor Yukio Mishima que cometeu seppuku após um levante militar, onde ele exigia a restituição do Imperador ao trono em seus plenos poderes. Este é o caso mais famoso, mas existem outros ligados ao mundo da ficção. Lógico que, em última análise, é preciso levar todos os fatores sociais e econômicos que levaram uma pessoa a cometer um ato tão extremo. Não podemos criar uma idealização virtuosa desta prática na ficção mesmo ao tratar dos tempos remotos dos samurais. Um dos próprios entrevistados do documentário chega a revelar que quando perdeu alguém próximo por causa disso teve uma experiência nada glamourosa.
Certos lugares são reconhecidos por inúmeros casos trágicos, chegando até a ficarem famosos a ponto de serem usados em ficção, como na publicação do livro Kuroi Jukai cujo tema se assemelha ao O Sofrimento do Jovem Werther, o famoso romance do autor alemão Goethe. Possuindo uma trama ao estilo Romeu e Julieta, muitos suicídios aconteceram após seu lançamento. O local representado já tinha alta incidência antes da publicação, e o romance retroalimentava essa idealização. Seja na ficção ou na realidade, a mídia japonesa costuma abordar diretamente os atos suicidas, por mais que em seguida testemunhe o aumento de casos devido a uma possível falta de cuidado ao lidar com o tema. Pena não haver o mesmo empenho em comunicar as medidas preventivas, limitadas a iniciativas como a de Saving 10000 e de outras locais. Ou seja, o ficcionista dotado de sensibilidade ao abordar a prevenção ao suicídio pode colaborar com material tão carente nesta sociedade. Por isso, mais uma vez ressaltamos a importância de apontar gatilhos, indicar referências de instituições que proporcionem ajuda a pessoas que possuam alguma propensão ao ato ou estejam em um mau momento emocional e indicar às pessoas próximas e familiares como detectar sinais de pessoas com tendências suicidas.
Uma ação inusitada proporcionou uma medida positiva em relação a um local famoso por ser usado por suicidas. O jogo mobile Pokémon GO atribuiu um local cheio de monstrinhos para capturar nesse local. Depois que as pessoas se aglomeravam — a notícia é de antes da pandemia — pela caçada aos Pokémon por lá, diminuiu a solidão assim como a taxa de suicídio. Havia uma iniciativa local determinada a diminuir o número de tentativas, e pelo visto Pokémon GO contribuiu ainda mais. São ações como essa, embora simples, que proporcionam um alívio em meio a uma sociedade tão individualizada como a do século XXI. Nos EUA surgiu uma iniciativa voluntária de pessoas que se dedicavam a ouvir pessoas que estavam se sentindo solitárias. E no Brasil, no estado de São Paulo, um grupo de pessoas se juntou durante a pandemia para telefonar aleatoriamente para pessoas para saber a respeito de seu estado emocional e dar palavras de apoio. Como dissemos acima, o isolamento ampliou as taxas de suicídio devido à solidão e à ansiedade.
Tratando de ficção positiva ao abordar o tema, é impossível deixar de comentar de Homens Imprudentemente Poéticos, escrito por Valter Hugo Mãe. O escritor português teve a sensibilidade de manipular o lugar reconhecido por uma tragédia como essa e alterar seu endereço de modo a evitar que os leitores tenham uma interação direta com o local original por meio da leitura. Mais ainda, em vez de identificar a região como o ponto final da vida de alguém, destaca a última tentativa de retornar e viver. O Japão é um país rico em cultura e que foi capaz de a transmitir pelo resto do mundo por meio de representações dos mais diversos formatos e mídias. E a imigração de japoneses no Brasil ocorrida há mais de um século nos fez aproximar ainda mais de suas peculiaridades. Caso queira se inspirar dessa proximidade ao escrever histórias, há inúmeras questões a respeitar, mas com certeza garantirão uma prosa deliciosa de ler quando bem aplicada.
Referências:
Setembro Amarelo - Como Abordar o Suicídio na Ficção
Estudo sobre a taxa de suicídio no Japão durante a pandemia:
Suicídio em Aokigahara aumentou depois do lançamento do romance Kuroi Jukai:
Notícia sobre Pokémon GO possivelmente diminuir a taxa de suicídio em determinado local no Japão
Documentário Saving 10000 (dublado em inglês, legendado em outros idiomas):
Discussão sobre o Efeito Werther:
Mais artigos sobre relações entre mídia e suicídio:
Lista de artigos diversos sobre a cultura japonesa:
Artigo sobre Ganbatte:
Sobre a influência cultural com a imigração japonesa ao Brasil:
Livro citado:
Ficha Técnica:
Nome: Homens Imprudentemente Poéticos
Autor: Valter Hugo Mãe
Editora: Biblioteca Azul
Gênero: Ficção
Número de Páginas: 192
Ano de Publicação: 2016
Link de compra:
Sinopse: Em Homens imprudentemente poéticos, Valter Hugo Mãe apresenta os personagens Itaro, o artesão, e Saburo, o oleiro, vizinhos e inimigos num Japão antigo, onde a morte e a ausência de amor servem de pano de fundo para a linguagem lírica do autor que, com sua linguagem única, tornouse a grande voz da literatura portuguesa contemporânea.
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