Essa é a história de um filho em fase de crescimento e lidando com as dificuldades da vida. Esta é a história de um pai que, em uma mentira, precisou atravessar os nove círculos do inferno quando esteve preso. Essa é uma história real de crime e poesia. Apreciem sem moderação!
Sinopse:
“Você nunca será livre até que você se liberte da prisão em sua mente”, assim começa a premiada graphic novel de David L. Carlson e Landis Blair. Uma combinação perfeita de palavras e imagens que são usadas para nos contar a história de um pai cego, um filho órfão e sua conexão com o crime do século.
Tudo começa em um inverno de Chicago em 1959. Após a morte da mãe, o jovem Charlie Rizzo reencontra seu pai depois de uma longa separação. Ausência e dor logo dão espaço para um possível recomeço. Através do recurso de flashback, as leitoras e os leitores são impactados no início da leitura pelo possível incidente que causou a cegueira em Matt Rizzo. Na obra, Charlie também fica surpreso com a descoberta e se questiona por que nunca ouviu falar sobre o ocorrido antes.
Matt Rizzo levava a vida como corretor de seguros, mas nunca se distanciou do universo da literatura e da poesia, que descobriu enquanto esteve preso. Com o passar do tempo, Charlie aprende a viver como uma pessoa cega, ressignificando e se adaptando à condição de seu pai. A parceria e a dependência entre os dois cresce com o passar dos anos, porém Charlie não imaginava que seu próprio pai pudesse mantê-lo cego diante da verdadeira história de sua vida.
Toda a verdade vem à tona quando uma velha mala é encontrada. O inferno e o purgatório engolem as possíveis razões. Mentiras ecoam e distorcem a visão de Charlie sobre tudo ao seu redor.
Décadas depois do ocorrido, o verdadeiro Charlie contou a história de seu pai ao roteirista David L. Carlson, que a partir de então mergulhou numa pesquisa profunda para a escrita de Uma História Real de Crime & Poesia. Os talentos narrativos de Carlson se uniram aos do magnífico ilustrador e quadrinista Landis Blair, que os darksiders já conhecem por ter ilustrado Para Toda a Eternidade, de Caitlin Doughty.
Nas exuberantes páginas desta graphic novel de true crime, Blair elabora uma narrativa experimental, que dá conta de transmitir a angústia da cegueira, o desespero da prisão, e os feixes de esperança em meio a tudo que viveu e descobriu sobre Matt Rizzo. Cada quadro de Blair é uma combinação perfeita de caos, sombra e luz capazes de erguer dos traços uma beleza única.
Belas histórias de pais e filhos sempre nos passam coisas valiosas sobre a vida. Mas, a história de Matt e Charlie envolve mais do que simples amor paterno. Tem também a incompreensão, a travessia por lugares sombrios, a redenção. Assim como Dante Alighieri, tantas vezes mencionado na história, iremos atravessar o inferno ao lado desses personagens e descobrir se existe salvação do outro lado. Durante a trajetória seremos presenteados com belos momentos de música e outros tantos de poesia em uma narrativa gráfica lindíssima de Landis Blair. Mais uma HQ que vai disputar fortemente os lugares entre as minhas melhores do ano.
Charlie Rizzo acaba precisando ir morar com o pai, Matt e se muda para uma Chicago em fase de transformação no final da década de 1960 e 1970. Uma cidade que oferecia poucas oportunidades para as pessoas, onde as ruas eram cruéis e repletas de perigos. Para Charlie, em especial, era uma mudança ainda maior, já que ele pouco conhecia seu pai. Seria uma vida difícil principalmente pelo fato de seu pai ser um homem cego e precisar de ajuda com várias coisas. Cegueira essa que Matt afirma ter acontecido após um infeliz acidente de caça junto de seus amigos quando ele era mais jovem. Tentando construir uma relação, Charlie tenta tocar a vida. Os anos se passam e a relação dos dois não muda tanto. Matt é um homem introspectivo, encerrado em seus livros e na escrita de um livro que Charlie não consegue compreender. Um dia, Charlie se envolve com as pessoas erradas e acaba participando de um crime. Charlie não pode revelar os detalhes do ocorrido devido à Omerta, um código de silêncio exigido pela máfia. Só que seus companheiros não são pegos enquanto ele precisa pagar pelo ocorrido. Sua pena pode ser menor se ele entregar seus companheiros, algo que ele não faz. Matt pede que ele revele os detalhes, caso contrário pode acabar indo parar como ele, sentenciado a anos na cadeia por algo que não fez. É aí que Matt irá contar a longa história de como ele passou por um inferno antes de encontrar a redenção.
Mencionando a edição da Darkside, ele está em uma edição belíssima de capa dura, com papel offset de alta gramatura. Adorei que a capa vem limpa, sem o nome do livro ou do autor, que se encontram na lombada. Dá um destaque na arte que é impactante. É saído de um dos trechos da Divina Comédia que é desenhada por Landis Blair ao longo da HQ. A tradução é de Bruno Dorigatti e Paulo Raviere e é preciso elogiar muito o trabalho dos dois. Não deve ter sido nem um pouco fácil porque envolvem trechos inteiros da parte Inferno da Divina Comédia. Então há uma transição entre o texto da narrativa e a poesia de Dante. Sem falar nos trechos mais musicais do quadrinho. Recomendo muito lerem o posfácio de David L. Carlson onde ele conta um pouco sobre as origens da escrita do quadrinho. Ver como ele conheceu Charlie e como a história foi repassada para ele é de arrepiar.
Essa é uma HQ belíssima de se acompanhar. Não só pelo roteiro, ao qual irei comentar um pouco mais abaixo, que é triste, porém apaixonante, mas possuidor de uma arte magnífica. Landis Blair usa uma arte baseada no emprego de hachuras e em um jogo de preto e branco que é maravilhoso. A HQ é um pouco menor do que o padrão, possuindo um formato quase quadrado, mas é para transformar as páginas em grandes quadros por onde Blair vai colocando sua arte. Seus personagens não são exatamente detalhados, mas são bem expressivos. Boa parte da HQ se passa dentro da prisão, fazendo com que os cenários puxem mais para o sombrio e o melancólico. Talvez a própria ambientação da HQ tenha dado mais gravitas para a arte de Blair. O hachurado esconde uma opressão àqueles que se encontram na prisão e nos raros momentos de luz, parece que é um raio de esperança furando o inferno do enclausuramento. A quadrinização varia muito ao longo da HQ, mas é até melhor para o leitor não esperar nada de exatamente tradicional. Narrativa e arte se combinam para formar um todo que é explorado nos quadros, fora deles, na conjunção de quadros ou até no uso do letreiramento para construir um quadro.
A arte de Blair é bastante influenciada pela maneira de pensar a página de Will Eisner. Claro, todos os quadrinistas hoje pensam ou foram influenciados por Eisner, mas uma coisa é estudá-lo e outra é incorporá-lo ao seu fazer quadrinho. Várias das páginas de Blair usam elementos da arte para unir balões e cenário produzindo um aspecto visual maravilhoso. Como se trata de uma narrativa bastante melancólica e sombria, há uma espécie de materialização das sombras, como se fossem miasmas que se espalham. Essas sombras funcionam como elementos de degradação para os personagens, ou alguma coisa que os prende ao status que eles se encontram. Também achei interessante como Blair representa a visão de mundo de uma pessoa cega: a partir de tentáculos, tateando o ambiente ao redor para obter uma "visão sensorial" mais ampla. Mas, existe ainda a musicalidade nas páginas e como ela toca nossos corações. As notas musicais se integram às páginas produzindo quase que uma sonoridade à leitura. Sei que é contraditório falar em sons na leitura, mas é algo que somente visualizando nas páginas como na vitrine no começo desta matéria é que é possível de se entender. Isso porque nem vou citar a maneira como o braille é incorporado à escrita, que é outro detalhe genial da arte de Blair.
Só que o roteiro de Carlson não fica atrás. É óbvio que precisamos pensar nele como uma história real que lhe foi transmitida por ninguém menos que Charlie, sim, o personagem do livro. O mérito de Carlson foi ter conseguido adaptar essa linda história em uma narrativa em quadrinhos, dando a ela mais camadas do que ela já possuía. Essa poderia ter sido só mais uma história, entre tantas outras que vemos todos os meses nas livrarias. Mas, existe uma verdade profunda revelada pelo autor. Verdade essa que tem muito de material e que podemos vivenciar diariamente nas relações entre pais e filhos. Nos medos e nos não-ditos que existem entremeada nelas. Não consigo deixar de pensar em histórias fascinantes com personagens presos que passaram por um processo de redenção como Um Sonho de Liberdade. E não há personagens inocentes aqui, apenas pessoas reais, de carne e osso. Do começo ao fim, é uma narrativa cativante, porém preciso rapidamente mencionar os últimos capítulos que são devastadores. O mais curioso deles é que são aqueles com o menor número de caixas de diálogo. A nós, leitores, é dada toda uma liberdade para imaginarmos aqueles momentos finais em nossas cabeças, construindo o cenário e a trilha sonora no qual ele se passou.
Precisamos falar de Leopold e Loeb, a dupla de criminosos que faz parte da narrativa quase como um todo. São criminosos famosos dos EUA por terem cometido um crime hediondo, ao sequestrarem um vizinho de 14 anos e o terem mutilado. Eram dois meninos ricos e educados que acabaram indo parar na prisão. A dupla se tornou basicamente os bichos-papões dessa época, aterrorizando a vida de muitas crianças. Quando Matt é preso, ele acaba indo parar na mesma cela que Leopold que tinha acabado de perder seu companheiro Loeb, vítima de um assassinato dentro da prisão. Uma amizade improvável que acaba se tornando algo bem especial entre eles, que desenvolvem um respeito mútuo. Ah, sim, dá para pensarmos tranquilamente em Leopold e Loeb como duas pessoas em um relacionamento homossexual, mas Leopold nunca admite isso. Era uma outra época em que ser gay era profundamente reprimido por uma sociedade conservadora e cruel com o diferente. Eram os anos 1930 nos EUA, pós crise de 29. Toda a década de 1920 nos EUA foi marcada pelo conservadorismo e xenofobia que transbordavam do norte-americano comum. Leopold é um personagem que ganha muitas camadas ao longo da história. De um simples garoto rico e sem remorsos pelo que fez até se transformar em um professor que precisa descobrir como ensinar a pessoas comuns aquilo que sabe.
A vida de Matt é uma colcha de retalhos que ele precisa descobrir como transmitir a seu filho antes que ele cometa os mesmos erros que ele no passado. Quando Charlie descobre que Matt mentiu para ele por toda a vida, ele não gosta nem um pouco disso. Ele se revolta e chama o pai de hipócrita. Sendo uma pessoa mais velha, entendo de certa forma por que Matt escolheu mentir para o filho. Posso não concordar e não sei se teria feito diferente se estivesse no seu lugar. Mas, o que foi feito, foi feito e agora Matt tem a oportunidade de contar a sua verdade. Pode não ser uma verdade que Charlie deseja ouvir, mas é uma verdade que precisa ser revelada. As dificuldades de Matt estão principalmente no fato de que ele não teve uma figura paterna e precisou sobreviver nas ruas, aprendendo, às duras penas, o que fazer para se manter em pé. É com essa visão de não ter tido essa figura paterna que ele tenta ser uma e consigo acreditar depois de ter ouvido sua história que ele consegue ser, mesmo que de um jeito pouco convencional.
Música e poesia estão intrinsecamente ligadas à história. Vamos ver muito de Dante Alighieri presente na narrativa. As referências não são apenas as diretas, aquelas mais visíveis, nas quais o texto é incorporado e mencionado. Mas existem as indiretas em que as vidas dos personagens acabam espelhando a travessia do protagonista de A Divina Comédia pelos nove círculos do inferno. Ao conhecer cada um destes círculos, ele vai aprendendo mais sobre si mesmo. Questionando suas escolhas na vida, refletindo sobre os limites da liberdade, a responsabilidade daqueles que raciocinam, e a luz que consegue penetrar mesmo nos lugares mais escuros do mundo. Nesse processo de conhecer A Divina Comédia, Matt também está em busca de uma razão para viver. Ele concorda em ler o livro com a condição de que Leopold o ajude a cometer suicídio. Leopold reconhece o talento e a sensibilidade de Matt e sabe que deve fazer o que puder para evitar isso. É nesse jogo de vai e volta que somos colocados na narrativa.
Quero destacar dois momentos fabulosos em que narrativa e arte funcionaram como uma só. Primeiro é do Matt chegando na prisão e somos apresentados a como o encarceramento funciona como uma completa retirada de liberdade. A prisão como o Panóptico criado por Jeremy Bentham com as celas formando andares e uma imensa torre de vigia fiscalizando a existência de todos. Esse momento inicial é impactante e causa no leitor aquela sensação de choque e estranhamento que acho que era aonde Carlson queria chegar. A arte está toda em perspectiva e cria um ambiente claustrofóbico terrível. É como se as paredes se fechassem em uma redoma da qual não podemos sair. É mais impactante ainda porque o personagem não pode enxergar, apenas sentir e a percepção de opressão vem do instante em que ele entra no recinto. A segunda cena fabulosa é a encenação da caverna de Platão feita com sombras. Matt fala em alguns momentos que o problema que Leopold tem é o de não ser capaz de explicar didaticamente os seus altos conceitos. Por isso que Leopold e Matt funcionam tão bem juntos. Matt é o mediador, a ponte. É incrível como o teatro de sombras ajuda perfeitamente aos prisioneiros entender que ideia é essa que eles queriam transmitir. A partir desse momento, cada um deles vai incorporar essa nova ideia ao seu arcabouço de vivências.
Contudo, é preciso pontuar alguns problemas de roteiro que acabam atrapalhando parte da experiência do leitor. A história é focada demais no Matt e em certos momentos a gente tem problemas em entender os acontecimentos que cercam a história. É curioso porque o autor insere uma série de informações que acabam sendo desnecessárias para a história, mas carece de outras que ajudariam a contextualizar melhor. É aquela linha tênue do que pode ser considerado informação inútil ou não. Para tal, o autor se vê na necessidade de pensar qual é o objetivo daquilo que está sendo escrito. Vai haver uma consequência futura? O que uma informação X ou Y tem que pode acrescentar na experiência de leitura? Ser uma história que abraça tantos temas pode ser uma espada de dois gumes. Ao mesmo tempo em que nos fornece uma rica imersão junto ao personagem de Matt e à sua relação com seu filho, ele deixa de lado outras narrativas que seriam tão interessantes quanto como a relação homoafetiva nunca assumida por Leopold, todo o terror da prisão diante das vidas de outros detentos que são meros bonecos de fundo do que personagens propriamente ditos. Havia tanto a ser dito. De duas, uma: ou o autor poderia ter realmente se concentrado na narrativa de Matt e não dar indicativos de que apresentaria a vida de outras pessoas ou abordar alguns destes personagens, oferecendo novas camadas à história.
Existem também alguns problemas de continuidade que o autor não se ligou. Como Carlson escolheu reduzir a história para que ela coubesse em um quadrinho (que já é bem extenso), partes significativas da história são suprimidas. As escolhas que Carlson fez nem sempre foram felizes. Por exemplo, como a sentença de Matt deixou de ser um ano para ser mais? Dessa forma a compreensão do que está acontecendo na vida dos personagens fica prejudicada, embora não comprometida por essas pequenas coisas. Não deixa de ser uma HQ maravilhosa, mas a inexperiência de Carlson como autor é nítida. O que a arte consegue elevar a outro patamar, o roteiro nem sempre entrega.
A HQ é tão cheia de histórias que poderíamos passar muito tempo discutindo sobre a vivência destes personagens. Me senti como alguém que estava junto de Charlie escutando essa história e ouvindo a sinfonia de Bach como parte do processo. É uma daquelas narrativas de vida que te deixam reflexivo, que te impactam a um nível profundo da alma. Como disse antes, entendo o que Matt fez para proteger seu filho, de não contar uma verdade dura demais, cruel demais, mas ao mesmo tempo entendo a raiva de Charlie em se sentir traído. Colocamos nossos pais e mães em um certo pedestal de santidade e existência imaculada que quando destruída, abala nossa confiança e auto-estima. A arte é simplesmente maravilhosa e não consigo imaginar essa HQ de outro jeito. Sem falar que é um daqueles quadrinhos impossíveis de serem adaptados para outra mídia. Ele funciona desse jeito porque foi pensado para esse jeito. Essa é a mágica da nona arte.
Ficha Técnica:
Nome: Uma História Real de Crime e Poesia
Autor: David L. Carlson
Artista: Landis Blair
Editora: Darkside
Gênero: Biografia/Fantasia
Tradutores: Bruno Dorigatti e Paulo Raviere
Número de Páginas: 457
Ano de Publicação: 2022
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