Samuel é um devorador de emoções. Uma raça alienígena que vive secretamente entre os humanos, amenizando explosões de emoções e sobrevivendo ao mesmo tempo. Seres eternos que ora vivem no mundo dos humanos, ora em Celestia, sua cidade onde eles se encontram e se regeneram de seus ciclos de vida. Seres praticamente eternos... até que eles descobrem um ser humano que não manifesta emoções.
Sinopse:
Eles vêm, comem e vão embora.
Desde a chegada ao planeta Terra, os devoradores encontraram uma maneira de viver em contato direto com sua fonte de alimento: seres humanos. Não é incomum se instalarem junto a uma casa ou família para facilitar o acesso a medo, ódio e outros extremos nutritivos. Depois de séculos, porém, esse estilo de vida parece estar à beira de uma crise — e o caso inédito de uma pessoa incapaz de transbordar sentimentos com certeza não ajuda a situação.
Uma história nasce de boas ideias. Pode ser um insight que temos ao caminhar pela rua, ao tomar uma ducha, ao pensar sobre a vida. Estas ideias são o ponto inicial que vão sendo preenchidas por complementos a ela ou novas ideias que constroem os tijolos de nossa construção. Como uma boa casa, que precisa de uma fundação forte e capaz de sustentar os cômodos. Só que quando temos muitas ideias, elas nem sempre se encaixam bem na proposta inicial da história. Pode ser que em um grupo de dez ideias, umas quatro ou cinco simplesmente não fazem sentido ou contradizem de alguma forma as outras. Ou atrapalham a condução geral da trama. O que eu senti nessa história foi justamente isso: várias boas ideias que tinham um enorme potencial, mas que uma atrapalhou a outra e assim sucessivamente.
A narrativa é contada por Samuel, um devorador de emoções vindo de um planeta distante. Para sobreviver eles precisam devorar emoções exacerbadas e eles podem fazer isso instigando-as ou simplesmente estando presente nos momentos certos. Eles não podem se alimentar uns dos outros por problemas de incompatibilidade. Os devoradores costumam viver com famílias ao qual eles conhecem suas rotinas e são capazes de conhecer suas emoções. Esse ano de instigar emoções e de devorá-las, eles entendem como transbordamento e é quase como se fosse uma nuvem de emoção pura. Um dia, Samuel conhece um rapaz chamado Vicente que estranhamente não transborda. Isso o deixa fascinado e preocupado ao mesmo tempo com a sobrevivência de seu povo. Enquanto Samuel está investigando Vicente, uma série de explosões de emoções acontecem por toda a parte, revelando um novo perigo para os devoradores.
Gosto bastante da escrita do Waldson. Sempre criativa e voltada para entender as emoções dos personagens, ele consegue nos fazer importar com eles. Suas histórias são bastante empáticas, como a de Oceanic onde temos a relação de Jonas e Rafael é aprofundada enquanto o autor fala sobre cidades que vivem no fundo do mar. Ou seja, o elemento scifi é usado como pano de fundo para outras discussões como imortalidade e amor. Os personagens saltam aos nossos olhos e ganham vida e motivações. Costumamos chamar isso de tridimensionalidade, quando parece que os personagens ditam aquilo que eles querem fazer. Embora Samuel seja uma espécie de alienígena, sua longa vivência entre os humanos o deixou mais humano e suave. A narrativa acontece em três partes e se assemelha ao formato em três atos típica da linguagem cinematográfica. Na introdução somos colocados no cotidiano do Samuel e como ele entende sua própria existência. No desenvolvimento acontecem as explosões de emoção e a descoberta da existência de Vicente, fazendo a narrativa se mover em outra direção e apresentando os obstáculos a serem ultrapassados. Na terceira parte temos o clímax e o momento de virada, nos colocando diante de uma mudança definitiva.
Serão os sentimentos a principal característica da humanidade? Nessa narrativa, Waldson Souza coloca alguns pontos de interrogação nessa afirmativa ao nos apresentar uma raça alienígena que é tão ou mais sentimental do que nós, ao se alimentar disso. E um ser humano que não é capaz de sentir. Impossível não compararmos essas discussões feitas por Waldson e não compararmos a como Samuel R. Delany encara o tema em livros como Dhalgren ou Babel-17. As emoções são os que nos tornam sencientes e compreensivos, mas será que nos torna únicos? Samuel se envolve com Vicente e acaba descobrindo um lar em seus braços, como uma espécie de porto seguro. É curioso porque não é algo que o protagonista planejava, ele apenas sentiu. A observação se transformou em afeto que se tornou um algo mais. E não importa se eles possuem origens diferentes. O que importa é o quanto um se importa com o outro. Isso refuta a ideia do exclusivo da humanidade. Mas, e Vicente? Por que ele não transborda? Essa é uma questão que você precisará ler para descobrir.
A história dos devoradores é fascinante. Me parece que Waldson Souza quis dar um aspecto angelical a essas criaturas, mas isso não ficou tão claro. Tudo "transborda" celestialidade (essa palavra existe???). A origem exterior dos devoradores é curiosa e aponta para uma série de questionamentos postos ao longo da história. Os devoradores são seres, em teoria, eternos, precisando passar por momentos em que eles se "desligam" para retornarem à vida posteriormente. É uma maneira de renovar ciclos e objetivos. Sua alta tecnologia também é curiosa e é exatamente por causa dela que alguns problemas se desdobram. A existência de tipos diferentes de devoradores, ligados a emoções diferentes, também provoca uma variedade de personagens que podem ser explorados em outras histórias.
Sobre a narrativa em si, me incomodou o excesso de plots. Sei que muitos deles acabam se interligando de uma maneira ou outra no final, mas vários pontos foram deixados de lado por causa de opções do autor ou pelo tamanho da história. Um exemplo é a própria família que era observada por Samuel. Os personagens são deixados de lado com muita facilidade, sem uma conclusão a esse núcleo. A própria ligação entre Igor e Vicente é tão efêmera que em vários momentos precisei me lembrar como Samuel conheceu Vicente. A gente tem três tramas acontecendo no livro: a existência de Vicente, o amadurecimento de Samuel e as explosões de emoção na Terra. E elas nem sempre estão interligadas. A narrativa teria lucrado mais se o autor tivesse se focado em algum desses momentos. Poderia ser um slice of life com Samuel descrevendo suas percepções sobre o mundo dos humanos a partir de seu ponto de vista único. Ou a relação tumultuada entre um devorador de emoções e um ser humano incapaz de alimentá-lo; explorar como Samuel se apaixonaria e precisaria ir contra tudo e todos para manter sua relação. Ou o homem que não transbordava poderia ter algo a ver com as explosões em si. Muitas coisas ao mesmo tempo, ainda mais em um romance no tamanho de uma novella, causam uma narrativa convoluta que nem sempre consegue atender a todas as questões postas. Nesses casos, a simplicidade é a melhor ferramenta.
"Se eu abrir os olhos agora, nascerei pela primeira vez? Não, isso já aconteceu, mas também houve diversos nascimentos; antes, só lembrei das mortes. Para cada vida encerrada, iniciou-se uma nova. Para cada pessoa da qual me despedi, conheci outras. Isso não é uma conclusão de que tudo está bem, de que eu aceito. Ainda estou assimilando."
Waldson Souza é um baita autor. Possui uma escrita bem acima do normal e consegue entregar narrativas que rasgam nossos corações. Considero essa história como não sendo um dos seus melhores trabalhos. Faltou foco e isso prejudicou o conjunto da obra. As ideias são muito boas e a própria narrativa na voz de um ser alienígena (em todos os sentidos... não apenas não-humano, mas à parte da humanidade) consegue nos fazer pensar sobre uma série de temas. Mesmo assim, é o tipo de narrativa que faz você querer ler mais coisas do autor e saber quais são suas próximas aventuras.
Ficha Técnica:
Nome: O Homem que não transbordava
Autor: Waldson Souza
Editora: Plutão
Número de Páginas: 103
Ano de Publicação: 2021
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*Material enviado em parceria com a Plutão Livros
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