Em Serrita, uma carpideira emprega as habilidades de um homem meio-falcão para descobrir segredos daqueles que se vão desse mundo. A irmã deste ser, meio-humana e meio-coruja, se pergunta o que é certo e o que é errado. Em um lugar onde as linhas que definem as coisas se acinzentam, o que será destes majestosos seres?
Sinopse:
As obrigações de uma carpideira vão além de prantear os mortos. É preciso purificar pecados, libertar mágoas, guiar a alma até a beira do mundo — um trabalho proscrito e desgastante. Para contornar isso, uma carpideira manipula seus filhos adotivos: Suindara, a quase-mulher quase-coruja; e Carcará, o quase-homem quase-falcão — gêmeos de forças opostas, tanto em aparência quanto em princípios. Mais eis que surge uma alma que a garganta carniceira de Carcará simplesmente não consegue digerir — e a relação conturbada entre mãe e filhos é colocada à prova quando a minúscula cidade agreste de Serrita vivencia uma febre do ouro.
Uma família disfuncional. Um tema que já apareceu em inúmeras obras tentando nos mostrar como pessoas com diferentes motivações são capazes de se relacionar. E esse relacionar sendo entendido de uma maneira amigável, mesmo com todos os problemas os membros da família se respeitando. Mas, e se essa relação se torna impossível? Como impedir que tudo imploda de uma vez por todas? Essa vai ser a resposta que Fernanda Castro vai tentar nos dar em Lágrimas de Carne. Uma história de fantasia dark que vai nos colocar diante de uma carpideira cujo nome é simplesmente Mãe que cuida de seus dois filhos, uma garota meio-coruja e um menino meio-falcão (este preso por correntes). Eles vivem em uma cidade de garimpeiros onde o ouro desperta as selvagens ambições de todos. Mãe usa os poderes de seu filho para descobrir os segredos daqueles que se vão e vender pelo preço adequado. Mas, uma ação impensada vai mudar a relação de todos para sempre.
A escrita da Fernanda continua muito boa. Não é o primeiro trabalho dela que vem parar nas minhas mãos, mas é o primeiro mais longo dela. Ela tem uma escrita bem impactante e que trabalha as temáticas que ela pretende no quadrinho de uma forma direta. O que eu percebi é que mesmo a escolha de palavras para Lágrimas de Sangue tem a intenção de mostrar a condição ruim que aquela família tinha. Todos os abusos cometidos pela Mãe estão ali nas palavras de Suindara, mesmo que esta tente florear o que ela diz. A conotação das palavras está perfeita, cabendo ao leitor juntar as informações e montar o contexto. A narração é em terceira pessoa focando naquele pequeno espaço que os três indivíduos habitavam juntos. Embora exista todo um pano de fundo, a autora usa aquele espaço para trabalhar as relações entre eles e demonstrar como tudo estava se esfacelando.
Entre alguns trechos, a autora coloca mais algumas informações sobre os personagens e o mundo em que eles vivem. Até mesmo a lenda urbana que cerca a Rasga-Mortalha, como Suindara era conhecida em Serrita. Aos poucos também obtemos informações sobre quem é Mãe e qual a extensão de suas habilidades. Essas informações adicionais ajudam a dar mais profundidade a como o mundo enxerga estes três seres. Entretanto, eu achei que a própria cidade não foi bem trabalhada. Talvez por limitações de espaço, a autora se focou em uma história mais intimista. Mas, a exploração do ouro e a relação da carpideira com os locais acabou um pouco fugidia. Sabe quando a gente fica com aquela sensação de que faltou algo? Pois é. No todo, a narrativa é bem trabalhada e consegue trazer para nós o que a autora queria nos dizer.
A encruzilhada na qual Suindara se coloca é de partir o coração. Ela tenta ser o meio de conexão da família. Desde o começo o leitor percebe o esforço da personagem em manter todos juntos, mesmo com todas as diferenças e dificuldades. O que a Mãe faz com Carcará é justificado por causa de seu mau comportamento; a obtenção de informações de pessoas mortas para a venda posterior é justificada para a sobrevivência de todos. Em seu coração, Suindara busca justificar por linhas tortas os erros, entendendo um mundo preto e branco. O bem e o mal. Mas, Carcará fala a ela que os humanos são mais complexos de serem compreendidos do que parece. Essa ideia amenizada de Suindara vai encontrar um fim abrupto quando Mãe coloca a ambição antes dos seus dois "filhos". É nesse momento que Suindara começa a se perguntar se sua Mãe realmente os ama ou está apenas usando-os. E isso redunda no posterior plot twist que é de partir o coração.
Gostei de como o elemento fantástico está presente na trama. Ele é bem sutil e nem um pouco espalhafatoso. A autora usa a magia ou o inexplicável apenas quando necessário e dando explicações bem triviais a respeito. O que importa não é a magia em si, mas o propósito pelo qual ela é usada. Digo mais: eu nem colocaria Lágrimas de Carne como uma narrativa fantástica, mas mais próximo de um realismo mágico. O fato de Mãe ser capaz de empregar algumas habilidades especiais também é o que é. O importante é o foco na relação familiar e em como Mãe tem uma visão utilitarista de seus "filhos". Mas, claro, nada é tão simples quanto parece. Caso contrário caímos na visão maniqueísta anterior de Suindara. Afinal, será que Mãe realmente vê seus filhos como ferramentas ou existe algo mais?
Ficha Técnica:
Nome: Lágrimas de Carne
Autora: Fernanda Castro
Editora: Dame Blanche
Número de Páginas: 49
Ano de Publicação: 2020
Link de compra:
*Material enviado em parceria com a Dame Blanche
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