Alessa chega com seu carro em Farol da Barra Pequena. Ela recebeu uma carta de sua mãe, avisando que ela estaria muito doente e queria vê-la. Esse retorno vai abrir feridas do coração de Alessa que ela achava ter cicatrizado há muito tempo. Mas, a cidade parece diferente... e monstruosa.
Sinopse:
Memórias funcionam de um jeito engraçado...
Alessa nunca desejou voltar para sua terra natal, Farol da Barra Pequena. No entanto, é para lá que ela retorna, após receber uma carta de sua mãe implorando por ajuda.
A pequena cidade litorânea parece devastada, completamente tomada pela neblina... E por onde ela vai, Alessa encontra as bonecas de pano que sua mãe fazia, representando pessoas e situações que desejava esquecer.
Para enfrentar a monstruosidade que tomou conta de Farol da Barra Pequena, Alessa vai precisar se recordar do que aconteceu em sua infância e adolescência. Mas as memórias nem sempre trabalham a nosso favor...
O passado tem o dom de nos perseguir. Por mais que a gente tente fugir de alguma situação trágico e tentemos esquecer o que aconteceu, em algum momento temos a hora de lidar com isso. Somente assim poderemos avançar e tocar nossas vidas. Esse acerto de contas pode ser algo simples como encontrar uma pessoa envolvida nessa tragédia ou algo mais complicado como rever os acontecimentos a partir de outro ponto de vista. A protagonista deste romance de Karen Alvares faz um pouco das duas coisas. E ela vai enfrentar o seu passado em uma atmosfera enevoada que nos faz lembrar bastante do cenário apavorante dos antigos jogos da série Silent Hill. Conhecendo a autora, posso dizer que minha aposta não deve ser longe da verdade. E se preparem para alguns momentos bem perturbadores.
Começamos a história ao lado da protagonista Alessandra (ou Alessa, como iremos chamar) chegando de carro na distante cidade de Farol da Barra Alta onde ela nasceu. Um lugar tão distante de tudo que seus aparelhos eletrônicos parecem não ter qualquer sinal, seja de internet, seja para um simples telefonema. E... meu deus... Alessa esqueceu de carregar o celular e a bateria está quase no fim. Em uma atmosfera bastante enevoada, a personagem entra na cidade e segue rumo ao seu antigo lar junto de sua mãe. Ambas viveram uma vida bastante difícil, sendo chamadas de bruxas por toda a cidade, por serem um pouco diferentes do resto do "gado". Não que elas fossem bruxas, mas o estranho hábito de sua mãe de confeccionar bonecas com a aparência das pessoas que as irritavam na cidade não ajudava a desconstruir essa imagem absurda. Algo que incomoda Alessa é que ela não encontra ninguém na cidade. Parece até que ela foi abandonada. E estranhas criaturas que parecem baratas do mar parecem atacar nossa personagem. Não é possível... ela deve estar louca. E nem usou ou bebeu nada antes de chegar na cidade. O que está acontecendo?
"Lembranças funcionam de um jeito engraçado. Às vezes, são vívidas como um dia claro de verão na praia. Já outras parecem encobertas por uma espécie de névoa densa, como quando as nuvens escondem o sol. E há ainda aquelas memórias que parecem destruídas, consumidas pelo fogo implacável do tempo e da distância. Porém, mesmo após um incêndio, ainda restam as cinzas."
Como já conheço a escrita da Karen e sou um fã do que ela escreve, vou ser só um pouquinho mais exigente do que o normal. Até porque sei o quanto ela é talentosa. Lendo Farol da Névoa, tive a impressão de estar lendo um folk horror. Em vários momentos tive essa impressão. Me fez remeter a filmes como A Bruxa, naqueles cenários mais rurais, com alguns aspectos de bruxaria e/ou sobrenaturais. Karen foi muito esperta ao colocar a personagem em um cantão qualquer do Brasil. Não há a necessidade de dar grandes explicações de o porquê de certos aparelhos eletrônicos não funcionarem. Basta colocar na conta da distância ou em qualquer perturbação sobrenatural. Fora que a história fornece uma aparência bastante atemporal. Voltando à questão do gênero, fui enganado por algumas falsas pistas e rasteiras que ela dá no leitor e gostei disso. Achei até que ela poderia ter se aprofundado mais seja na questão da bruxaria em si ou na confecção de bonecas. Esse último tem vários significados sobrenaturais que poderiam ter sido explorados. Mas, como a gente vai perceber durante a leitura, o foco é no passado e na necessidade da personagem em seguir adiante.
Uma coisa que a Karen faz muito bem é criar o humor (o mood) da história. Ela é adepta do medo inerente, aquele que está ali presente ao seu lado. Não há a necessidade de chocar com algo súbito; é possível enredar o leitor fazendo-o temer e olhar por cima do ombro. O verdadeiro medo é aquele que é insinuado. Hoje temos o hábito de desejar tomarmos aquele susto instantâneo; mas uma boa história de terror apenas te faz imaginar. A primeira criatura bizarra da história demora bastante para aparecer. A segunda demora ainda mais. A partir da terceira, nós começamos a antecipar a vinda do susto porque a cidade inteira parece perigosa. Fenômenos simples como o chiar de um rádio nos causa apreensão. Quando o fato acontece, ficamos com mais medo e receio pela vida da personagem. Aliás, essa sensação de que a personagem pode perder a vida é bem forte em todos os momentos da história. Ela não parece estar segura em nenhuma situação.
Trabalhar com o tema da memória é sempre bem complicado. Exige que o autor saiba o que entregar aos leitores e como. Isso porque a memória não é linear; ela pode ir e vir, avançar e voltar. Alguns fatos podem ser mais ou menos importantes do que outros. Os gatilhos que disparam certas recordações podem ser bem específicos. E em muitos desses casos, as lembranças são momentâneas, de situações breves e não de momentos claros. Karen soube dosar bem as duas circunstâncias, embora eu achasse que ela poderia ter optado por uma abordagem não-linear, escolhendo o que entregar. Poderia até enrolar o leitor com alguma memória mal interpretada, usando um red herring, ou seja, fazendo com que o autor focasse sua atenção a uma situação quando outra mais importante estaria acontecendo no fundo. Ou seja, é como se eu balançasse uma cenoura na frente do leitor quando o que importasse era o macaco passando no fundo. Em todo caso, gostei de como a história foi tomando corpo aos pouquinhos, sem pressa até o momento do acerto de contas.
Um ponto que imaginei que a Karen poderia ter aproveitado melhor é o da cidade pequena e preconceituosa. Como a trama se situou mais no presente, com a protagonista precisando sobreviver a um cenário bizarro e ameaçador, o passado acabou tendo menos oportunidades para ser mais delineado. Toda a violência simbólica e até física que a protagonista e sua mãe viveram perdeu um pouco do impacto porque permaneceu como um eco do passado. Mais para a frente da narrativa, o foco dos problemas da protagonista acabaram na relação conflituosa com sua mãe, que era alguém precisando sobreviver a qualquer custo. Quando na verdade a real culpada por esses momentos turbulentos foi a própria cidade que não criou um ambiente saudável na qual a personagem pudesse crescer. Rosa Maria, a mãe de Alessa, tem sua parcela de culpa, claro. Por isso que explorar mais essa hostilidade da cidade em relação às duas personagens teria criado mais corpo a tudo o que aconteceu depois.
Farol da Névoa é uma ótima história escrita por uma autora com bastante experiência na arte de criar o medo na mente dos leitores. Gosto de como ela aborda os problemas vividos pelos personagens e usa o sobrenatural como um reforço àquilo que ela deseja primordialmente. Sua escrita está mais sólida e certeira, indicando aonde a autora quer chegar com sua narrativa. Ao final, temos uma narrativa que, mesmo intimista, consegue ser apavorante e que tem algumas origens no folk horror. E nada tão assustador quanto bonecas estranhas e baratas do mar com aparência humana.
Ficha Técnica:
Nome: Farol da Névoa
Autora: Karen Alvares
Editora: Dame Blanche
Número de Páginas: 117
Ano de Publicação: 2021
Link de compra:
*Material enviado em parceria com a editora Dame Blanche
Comentarios