Em um monastério no meio da floresta, uma noviça tenta passar pelos ritos necessários para fazer parte de sua ordem. Mas, uma aparente maldição a colocará fora de seu lugar seguro em uma jornada cruel em busca de respostas sobre si mesma.
Sinopse:
Em um convento cravado no meio da grande floresta um bebê abandonado cresce e se torna a jovem noviça Lisa. Em seu dia de ordenação, ela vê seu sonho de ser freira desmoronar depois da acusação de estar possída pelo demônio. Sua última chance é encontrar Monge Gilles, o único exorcista da região, que vive numa vila isolada. Lisa agora tem um desafio: enfrentar a maior floresta tropical do planeta, sem nunca antes ter saído da clausura.
Conseguir criar um cenário de exploração do desconhecido é sempre algo difícil e recompensador. Isso porque o autor constrói um personagem que nada conhece do mundo e de repente se vê na necessidade de saber mais sobre ele enquanto passa a conhecer mais sobre si mesmo. Esta é mais uma forma de abordar a jornada do herói e o autor consegue fazer isso muito bem em uma narrativa que bebe da exploração colonial europeia na Amazônia. Isso mantendo parte de sua originalidade à medida em que ele extrapola determinados elementos.
A escrita do Ingo é bem descritiva e imersiva. A gente consegue se familiarizar bem com o universo que ele criou. Outro aspecto que serve como apoio para dar um ar específico à história é a preocupação com a fala dos personagens. Cada um deles se insere dentro de sua classe social específica. Seja a freira educada em teologia e com pouco conhecimento de mundo, ou o ribeirinho acostumado à dura vida da pescaria ou o prisioneiro que parece ter sido um bandoleiro. Todos tem sua forma particular de fala o que compõe para a sua caracterização. A revisão da Empíreo está muito boa com pouquíssimos erros. A narrativa é em terceira pessoa focada em Lisa e em suas desventuras pela floresta. Vez por outra temos uma tomada no núcleo de personagens do convento, mas achei estes trechos um pouco mal aproveitados. Achei que dava para explorar mais estes locais. Mais abaixo eu falo um pouco mais sobre estas questões de narrativa.
Os personagens são bem construídos e realmente ajudam a narrativa a andar. Os acompanhantes de Lisa servem para ajudá-la a amadurecer e a perceber o quanto o mundo é grande se visto das janelas do convento. Lisa é uma personagem em dúvidas sobre si mesma. Sua jornada é uma autorreflexão sobre qual o seu lugar no mundo. Se ela começa como uma personagem submissa e seguidora das normas, ela vai percebendo que suas escolhas são responsáveis pela forma como sua vida e daqueles ao seu redor é conduzida. Que não basta esperar passivamente para que as coisas aconteçam. Era necessário agir, lutar por aquilo em que acredita.
Me incomodou o fato de que algumas mudanças ocorridas no caráter da Lisa parecem rápidas demais. Entendo que não dava para passar dezenas de páginas descrevendo como essas mudanças de perspectiva aconteceram pouco a pouco. Mas, eu sinto que faltaram capítulos ou trechos em alguns capítulos em que a personagem parava para refletir sobre suas crenças. Digo isso porque esses momentos acontecem em outros trechos da história. Entender a psiquê da personagem é importante para a narrativa como um todo e perceber que esta destoa em parte do que a personagem era antes ou esta parece abrupta ou forçada prejudica o próprio desenvolvimento da mesma. A abordagem do Ingo Muller acerca das engrenagens de funcionamento de seus personagens é semelhante ao que a Robin Hobb faz com Fitz em seu livro O Aprendiz de Assassino. A narrativa funciona em função das mudanças que ocorrem com o personagem.
Gostei demais da ambientação. Faço ideia da pesquisa que o Ingo deve ter feito para ambientar sua narrativa no norte do Brasil. E pior: ele pegou o norte no período colonial durante a exploração das drogas do sertão. Isso me faz pensar que ele pode ter situado a narrativa entre os séculos XVII e XVIII. As narrativas desse período nessa região são muito escassas. Temos apenas fragmentos de relatos de viajantes. Mas, assim, nem é preciso saber tanto destes detalhes porque ele consegue entregar todas as informações que você precisa na história. Outro ponto positivo é que a história é muito autocentrada e encerrada em si. Ou seja, se trata de um livro único e que encerra a jornada destes personagens. Acho positivo, mas também abre brechas para aproveitar algumas localidades ou personagens da narrativa como o famoso Fagundes, nosso membro das forças da Coroa que acaba se envolvendo em vários problemas durante a perseguição aos nossos personagens. Mas, ele é um personagem repleto de nuances e daria um ótimo protagonista em uma história futura.
Temos vários temas sendo debatidos aqui nesta narrativa: amor, traição, aceitação, pertencimento. Por exemplo, Bira tem parentes que faziam parte de uma comunidade indígena e durante a história ele está correndo de qualquer coisa que o coloque de volta neste mundo. Mas, ao mesmo tempo, é algo que é intrínseco a ele e é percebido pelos nossos personagens. O seu momento é quando ele descobre a si mesmo e qual o seu papel. Aquele momento final eu não gostei porque destoou demais do caminho que o personagem estava percorrendo. A justificativa usada por ele para ter feito tamanha mudança não é tão boa. E eu até senti isso em muitos momentos na narrativa. Plots que acabavam em becos sem saída (como o da irmã que detesta Lisa ou do prefeito corrupto e sua esposa sofrida que possui um segredo). Achei esses plots mal aproveitados e que poderia ter rendido desenvolvimentos épicos.
Por outro lado, o autor tem uma ótima pegada em cenas de ação. Todas são muito fluidas e possíveis. Nada é estranho demais e olha que eu já vi autor que tem extrema dificuldade em montar tais cenas. Mais para o final temos uma sequência incrível que realmente vai te deixar preso às páginas para saber o que vai acontecer a seguir.
Corda no Pescoço é uma boa narrativa usando uma ambientação que eu achei muito diferente. Meu espírito de historiador se sentiu feliz até porque o autor foi bem cuidadoso com as referências históricas e mesmo tendo alguns detalhes que parecem ser fantásticos, manteve seus pés no chão. Uma leitura que vai te prender por boas horas de leitura apesar de em alguns momentos te fazer flutuar. Mesmo assim, os bons momentos de reflexão e ação superam os pequenos deslizes, criando uma narrativa que eu tenho certeza que vai agradar aos leitores mais exigentes.
Ficha Técnica:
Nome: Corda no Pescoço
Autor: Ingo Muller
Editora: Empíreo
Gênero: Fantasia
Número de Páginas: 296
Ano de Publicação: 2016
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*Material recebido em parceria com o autor
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