Ao acordar numa cama junto de seus pais, a pequena Theresa (ou Triss, para sua família) percebe que alguma coisa está errada. Ela sente que suas memórias estão borradas e tem uma fome absurda. Logo, ela se dá conta de que ela pode não ser a Triss e alguma coisa pode ter acontecido a ela. E quem é o Arquiteto?

Sinopse:
Você acorda após um acidente. Você sente uma fome constante e implacável. Você acorda durante a noite várias vezes, com folhas e terra em seus cabelos. Objetos inanimados tentam te atacar. Você atrai tesouras. Em seu pranto, no lugar de lágrimas, teias de aranha brotam como fios de desespero. Sua irmãzinha passa a ter um medo incontrolável de você... Assim tem sido a vida da jovem Triss Crescent. Aos poucos, ela descobrirá que o mal com o qual tem convivido é mais estranho e terrível do que ela jamais poderia imaginar. Tomada por dúvidas, ela parte numa jornada frenética em busca do Arquiteto, projetista de prédios, pontes e destinos sombrios. Acompanhe Triss nesta arrepiante fábula da premiada escritora britânica Frances Hardinge, que desponta como uma das mais incríveis contadoras de histórias de sua geração. Mas lembre-se: nada é o que parece. Até mesmo você.
Apesar de termos nos espalhado por todo o planeta o ser humano não conhece como um todo o lugar onde vive. Esse fato é algo que fascina e assombra as mentes das pessoas ao longo dos séculos. No passado, os povos antigos contavam contos cautelares sobre estranhas aparições na floresta, seres horripilantes capazes de devorar nossas mentes ou metamorfos que substituíam crianças incautas, tomando seus lugares. Histórias sobre metamorfos são um pouco raras, mas já comentei algumas delas por aqui. Em A Criança Roubada, Keith Donohue nos mostra a vida de Henry Day, que foi substituído por Aniday que ocupa seu lugar e o metamorfo é apresentado como um ser maléfico e insidioso. Então, será que esses seres que ocupam os recantos sombrios de nosso mundo são, necessariamente, seres maléficos ou apenas não podemos defini-los dentro de nossas caixinhas? Hardinge nos leva a esses lugares secretos em uma fantasia sombria repleta de elementos cinzentos, onde o que é bem e o que é mal não pode ser facilmente esclarecido pelo leitor.
A protagonista, Triss, desperta na cama após um momento de preocupação de seus pais. Ela caiu no rio Grimmer e quase se afogou. Pelo menos é isso o que os pais lhe dizem. Mas, à medida em que ela vai se recuperando do susto, Triss começa a perceber que suas memórias estão lacunares. Ela não consegue se lembrar de detalhes simples de sua vida como a relação com sua irmã ou até onde fica o seu quarto em sua casa. Aos poucos ela vai se dando conta de que ela não é a pessoa que a sua família pensa que é. Sua irmã, Pen, parece ter alguma coisa a ver com isso. Sua fome é como a de um animal selvagem; o que sua família atribui à sua doença e consequente recuperação, Triss vai se convencendo de que ela pode ter substituído a verdadeira filha dos Crescent. Ao longo das páginas, a trama vai tomando contornos macabros, com o surgimento de um homem conhecido apenas pela alcunha de o Arquiteto, e que parece ter algum segredo junto de seu pai. E Triss... ou não-Triss está no meio dessa história toda sem ter total conhecimento do seu papel. Assim começa uma aventura onde as coisas não são o que parecem ser.
"Triss lembrou-se de uma escuridão gelada. água fria entrando, pelo nariz, pela boca e pela garganta. Parecia lembrar-se também de enxergar por entre um negrume amarronzado, enquanto brandia os membros lentamente, e de ver duas formas sombrias acima dela, cujos contornos ondulavam e oscilavam com o movimento da água."
Essa é uma narrativa de fantasia com toques bastante sombrios. Hardinge buscou sua inspiração nos contos de fadas e em narrativas de cunho cautelar para encorpar suas ideias. Há muitos anos atrás, li um livro chamado Mythago Wood, de um autor chamado Robert Holdstock, cuja abordagem do fantástico era bastante semelhante à Canção do Cuco. Holdstock apresentava seus seres como criaturas insondáveis para a mente humana, cujas motivações fogem do que entendemos como lógico e racional. As florestas antigas eram o seu lar ancestral e a evolução da humanidade colocava em risco a existência de tais criaturas. Hardinge traz os Outros, aos quais ela não procura explicar quem são ou o que fazem. Através da leitura, ficamos sabendo que eles sempre existiram e é isso. Suas habilidades nos escapam e podem nos parecer miraculosas, mas, claro, possuem suas limitações dentro de um mundo pós-Revolução Industrial. Curiosamente, a narrativa de Hardinge se passa quase no mesmo período que o livro de Holdstock: no começo do século XX. Essas criaturas, mesmo sendo muito poderosas, possuem suas próprias regras e lugares nos quais podem viver. Há um pouco da noção nietzcheana de a morte de Deus, no sentido de que as pessoas se afastaram demais do aspecto teológico de suas vidas e abraçaram a ciência com força. Isso fez com que as criaturas perdessem o que as torna amedrontadoras para os humanos. Os Outros são seres conceituais, que se alimentam de memórias, de histórias e de emoções.

Sobre a escrita propriamente dita, ela emprega uma narrativa em terceira pessoa onisciente, algo bastante comum em contos de fadas. Não há necessidade de empregar cortes de câmera, como é usado em várias narrativas mais contemporâneas. Ou onde posicionar o ponto de vista do leitor. Triss é naturalmente uma personagem-orelha, já que ela está buscando recuperar suas memórias. Isso fornece à autora a justificativa necessária para trabalhar a dinâmica familiar ou explicar posteriormente os aspectos mais "sobrenaturais" da história. Os capítulos são bem curtinhos, contendo 6, 8 ou 10 páginas. A ideia seria fornecer um dinamismo ao desenrolar da narrativa, empregando técnicas saídas das histórias Young Adult. Só que não funcionou bem como a autora imaginou porque ela emprega parágrafos muito descritivos, fornecendo peso ao que está sendo contado ao leitor. A narrativa é bem mais lenta do que parece. Hardinge não se preocupa muito em explicar determinadas situações, dando a impressão de que as coisas são como são e a gente precisa só aceitar. Dependendo do leitor, isso pode não cair bem. Não se trata de um erro de escrita, mas de uma característica propriamente dita. Como leitor, o livro não funcionou para mim. Tive bastante dificuldade para terminá-lo, e uma das razões para isso foi essa escrita mais pesada. Outros motivos contribuíram, mas esse, especificamente, foi um dos que mais me atrasaram.
A protagonista, Triss, é uma personagem naturalmente curiosa e inquisitiva. Ela segue uma tendência heroica e aos poucos vai se afeiçoando ao núcleo de personagens ao seu redor. Ela começa como alguém buscando apenas a sobrevivência e entender quem ela é. Suas ações são movidas por essa necessidade de saber quem a criou e como ela chegou nas circunstâncias atuais. À medida em que o livro vai colocando-a em novas situações, Triss desenvolve uma conexão mais forte com Pen. Mesmo sabendo que é uma doppelganger e tendo ciência de que ela não é a irmã real da menina mais nova, Triss e Pen passam a se tratar como irmãs. Elas desenvolve uma afetuosidade e uma cumplicidade que ultrapassam a simples noção de consanguinidade. No final, a personagem passa a desejar ajudar as pessoas a seu redor a encontrar a felicidade. Em um determinado momento em que ela está fugindo de uma situação complicada, Triss interrompe sua ação para dar conselhos a uma pessoa importante da história. Tudo porque ela entende que suas palavras, por virem de alguém de fora de um contexto familiar, podem ter um eco mais potente. Tem outro detalhe: assim como vários dos Outros (e mesmo Triss fazendo várias boas ações), isso não a enquadra necessariamente em um rótulo de "boazinha". Ela faz o que precisa fazer para continuar existindo; se ela precisar realizar alguma ação reprovável, ela assim o fará. Por essa razão é que Triss consegue desenvolver laços com Violet, outra personagem importante do livro.
"As casas respiram quando dormem, tanto quanto seus donos, e os únicos ruídos no silêncio eram tiques suaves e rangidos delicados. O resto da família tinha ido para a cama fazia muito tempo, e Triss não ouvia som algum de movimento vindo dos quartos deles. Não havia mais ninguém na casa além da cozinheira, cujo quarto ficava no porão. Geralmente, a governanta ocupava um quarto perto da família, mas no momento eles não contavam com uma."
Já falei do aspecto industrial tratado na trama, mas a narrativa se passa no período da Primeira Guerra Mundial. Um dos personagens da família Crescent, o primogênito Sebastian, morreu durante o conflito. Sua família recebeu apenas alguns dos seus pertences que sobraram no esquadrão de seu filho. Isso mostra um dos dramas vividos pelos familiares que perderam seus filhos durante a guerra. A ausência fez a família Crescent mudar completamente. Os pais ficaram abalados demais com a perda de Sebastian, e isso se transformou em uma proteção obsessiva de suas filhas, principalmente na de Triss, que passou a ser a filha mais velha. O que ocorreu com esta família é o que ocorreu com várias outras. As perdas de soldados chegaram ao patamar de quase um terço da população masculina em idade de trabalho. O trauma de um conflito em larga escala como esse se deu nos aspectos familiar e social.

O que me leva ao próximo tópico que é a personagem de Violet Parish, a viúva de Sebastian. Por ter perdido o seu marido ainda jovem e sofrendo de outra situação explicada mais à frente no livro, ela vive uma vida nômade. Para poder sobreviver, Violet passou a trabalhar em várias profissões, algumas delas até que eram destinadas a homens em idade produtiva. A falta de mão-de-obra obrigou os patrões a contratar qualquer força de trabalho disponível. Mulheres passaram a ocupar estes espaços, algo que anteriormente era visto como uma barbaridade. Ainda estávamos em uma Europa alimentada por uma mentalidade saída da sociedade de corte do período absolutista. O papel da mulher era unicamente voltado para o lar. A ocupação de vagas de trabalho fez com que o movimento feminista ganhasse muita força no final da década de 1910 e 1920. Mas, claro, havia muita resistência de pessoas que tinham uma visão mais tradicional sobre qual era o papel social da mulher. Só que essa transformação social se provou ser irreversível, mesmo com o crescimento posterior da população masculina, algo que levou quase uma década para retornar aos patamares anteriores a 1914, ano de início do conflito. Violet sofre com a incompreensão de seus pares e o fato de ser uma viúva jovem a tornou hostilizada pela sociedade. Tem um comentário de Pen que é excelente (e estamos falando de uma jovem menina na casa dos nove anos): em um dado momento da história, Pen pergunta se Violet é uma meretriz, já que ela passa o dia fazendo entregas usando sua moto.
"A guerra pertence à humanidade, e a ninguém mais. Mas para nós ela foi uma dádiva, isso eu posso dizer. A guerra esmagou a fé. Todo tipo de fé. Antes da guerra, as pessoas mantinham suas posições, e nunca ficavam muito abaixo ou acima. E agora? Pobres e ricos morreram lado a lado nas trincheiras, e tinham todos basicamente a mesma aparência com a cara enfiada na lama. E os heróis que voltaram do inferno não se preocuparam mais em arrumar o topete enquanto passavam fome nas ruas. E as mulheres! Antes, ela se guardavam em seu caminhozinho de sempre e não pisavam na grama. Mas as que trabalhavam nas fazendas e fábricas durante a guerra gostaram de cuidar da própria vida, não? Então os maridos estão todos em pânico. Assustados. Incertos. E toda essa dúvida, esse chacoalhar dos fundamentos, havia mais disso nas cidades."
Canção do Cuco é uma boa narrativa que vai pegar elementos narrativos que se tornaram um pouco incomuns na fantasia contemporânea. Mas, é bom ver que alguns autores vão buscar sua inspiração em narrativas mais originárias do gênero, de quando a linha entre conto de fadas e fantasia não era tão clara assim. Contudo, preciso dizer que o livro não me agradou muito, sendo que senti pouca empatia pelos problemas vividos por Triss. Mesmo sendo um personagem detentor de várias camadas, o que, teoricamente, a tornaria mais interessante, ela não conseguiu ressoar comigo. Pen é uma garotinha que, em diversos momentos, mais me irritava do que qualquer coisa. Pontuando que Pen é uma das pessoas que colocam a protagonista na situação inicial que ela se encontra. A facilidade com que Triss a perdoa me incomodou bastante, dada a gravidade das ações de sua irmã menor. Detalhe: Pen toma algumas atitudes que não se encaixam nas ações de uma garota da idade dela. Hardinge não explica como Pen tem alguns tipos de conhecimento bizarros, dignas de um punguista de primeira. Pen rouba, mente, engana... tem um processo de redenção lá pelo final em que ela enxerga Triss como sua irmã verdadeira. Mesmo tentando ser bem leve e condescendente com o que a autora faz, minha suspensão de descrença foi zerada nesse ponto. Qualquer coisa se tornou possível para o desenvolvimento da história que a autora queria contar. Foi aí que a história me perdeu. Mas, é aquilo: o que não funcionou para mim, pode funcionar para você, leitor.


Ficha Técnica:
Nome: Canção do Cuco
Autora: Frances Hardinge
Editora: Novo Século
Tradutor: Caio Pereira
Número de Páginas: 320
Ano de Publicação: 2015
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