Diante da pandemia global, os livros digitais ganharam mais espaço. Com o isolamento social e a parada das atividades, as editoras ficaram sem possibilidades concretas de imprimir seus materiais. Será isso uma mudança?
No momento em que eu escrevo esta matéria é uma sexta-feira. Acordo às 8 e meia da manhã, olho as notícias do dia e começo a acessar os meus grupos do Whatsap. Em um dos grupos que eu faço parte, uma menina posta uma iniciativa da Plataforma 21 em que ela disponibiliza alguns primeiros volumes de suas séries gratuitamente enquanto os outros volumes estão a um bom preço. No meu Telegram, recebo a informação de que a partir de sábado um outro livro digital da Avec Editora vai entrar em promoção e que o novo livro da Cláudia Lemes vai sair primeiro em formato digital e depois que as coisas voltarem ao normal deverá sair o físico. Pelo meu e-mail, a Companhia das Letras, uma das editoras parceiras do Ficções, nos informa que disponibilizará uma nova rodada de livros a serem lidos e resenhados pelos parceiros a partir de domingo.
É curioso que mais ou menos nessa época no ano passado eu escrevi uma matéria falando como estávamos em um revival dos livros físicos e que os digitais haviam se assentado como complementares a eles. Que ebooks e livros viviam em universos distintos e um não afetava o outro. Como as coisas podem mudar em um ano, hein? Estamos diante de uma pandemia global em que várias atividades produtivas estão paralisadas devido ao isolamento social. Quando voltarmos às nossas atividades estaremos diante de um mundo novo onde teremos de ser mais cuidadosos com nossa higiene e a maneira como interagimos socialmente. Mas, uma das notícias mais fatais dessa pandemia é o impacto econômico que ela vai causar. As previsões mais otimistas revelam uma retração econômica mais aguda do que a crise de 2008. E isso ainda vai depender muito de como o isolamento vai se dar: serão 3 meses, 6 meses, 9 meses?
Vou usar como exemplo primeiro o mercado americano de quadrinhos. Lá a empresa que faz a distribuição de quadrinhos é a Diamond. Ela possui o monopólio da distribuição em bancas de jornais, lojas e comic shops. Até existem outras distribuidores, mas mais de 80% pertencem à Diamond. Há duas semanas atrás ela enviou um comunicado às editoras de quadrinhos alegando não ter capacidade de cumprir seus compromissos pelos próximos três meses. Ou seja, ela anunciou um calote coletivo. Não só pela impossibilidade de pagar os encargos, mas também por não poder estocar ou enviar materiais até os pontos de venda. Muitos de seus depósitos estão obedecendo às regras de isolamento social. Para editoras grandes como a Marvel e a DC, elas tem estofo para sobreviver mesmo com o calote. E isso levando em consideração que a DC já está estudando formas alternativas de distribuição. Mas, para editoras menores que trabalham a toque de caixa, lançamento a lançamento, isso pode significar o encerramento das atividades. Os pontos finais também estão sofrendo com o fechamento, precisando fechar lojas ou bancas, deixando milhares desempregados. Quando voltarmos da pandemia, isso pode provocar uma mudança na lógica de publicação de quadrinhos. DC e Marvel já possuem plataformas digitais bem eficientes e eles investem cada vez mais em assinaturas e planos de fidelização.
Aqui no Brasil passamos por uma crise editorial desde o ano de 2016. Desde 2018 estamos sempre falando que agora é o ano da recuperação. 2018 foi a quebradeira das distribuidoras após a falência da Abril e o fim da DINAP. Uma das principais distribuidoras do país, prejudicou não apenas o envio de quadrinhos, mas também o de livros e revistas. Em 2019 tivemos a recuperação fiscal das Livrarias Saraiva e Cultura. Isso abalou as estruturas de várias editoras que viram as vitrines das lojas físicas desaparecendo uma a uma. Dentro desse cenário, houve uma reinvenção na forma como as editoras passaram a se relacionar com o seu público. E agora em 2020, temos uma nova crise já com algumas livrarias fechando suas portas. Usando exemplos do Rio de Janeiro, a Cultura já não existe mais por aqui; a Saraiva fechou alguns de seus principais pontos de venda na capital e vai fechar ainda mais nos próximos meses; a Nobel também já fechou vários de seus pontos de venda.
A verdade é que estamos em um momento de permanecer em casa. Com as gráficas fechadas, as editoras ficaram sem meios de imprimir seus materiais. A única opção se tornou a venda dos materiais em seu formato digital. No começo, fornecer ebooks foi um grande movimento das editoras para darem um suporte para os leitores que foram obrigados a permanecer em suas casas. Uma forma de aplacar a solidão e dar esperança. Mas, quinze dias mais tarde, algumas editoras perceberam o filão que se revelava na publicação digital. É lógico que as vendas de livros caíram bastante já que em um cenário apocalíptico como esse, as pessoas acabam dando prioridade à compra de alimentos e medicamentos. Entretenimento acaba ficando em segundo plano e quase sempre é cortado. Nesse sentido, se tornou essencial para as editoras encontrarem maneiras para sobreviver.
Outro fator que pode fazer com que os digitais acabem ganhando mais espaço é a nossa própria geração atual de leitores. Uma geração que prefere a praticidade e a conveniência na hora de ler um livro. É mais fácil ler um livro de 800 páginas no Kindle do que carregar um calhamaço pela rua. Não há mais tanto o apego pelo físico. Muitas editoras optaram pela publicação de vaidade, onde o livro se torna um objeto de consumo (capa dura, pintura trilateral, ilustrações internas, fontes diferenciadas, extras suculentos). Só que no cenário atual, com gráficas paradas, nos voltamos para o digital. Será que, após nos acostumarmos com a praticidade de ler em um smartphone ou em um ereader, voltaremos a enxergar um livro de papel com o mesmo carinho?
Tudo vai depender de quanto tempo ficaremos em casa. Diante da atual desobediência da população brasileira em manter o isolamento social, acredito que estaremos navegando para um cenário bem ruim de cinco ou seis meses em cada. Em uma atual visão de tendências, acredito que a leitura digital deve triplicar seus números ao longo desse ano. Até o ano passado, estimava-se que os ebooks representavam quase 3% do total de leitores brasileiros; aposto em uma chegada de até uns 8 ou 9% antes de 2020 se encerrar. O conforto da leitura digital, a incapacidade de obter novos livros aliado aos materiais liberados hoje pelas editoras vão formar um público fidelizado. Ou seja, fica aquela mensagem simples para as editoras e para os criadores de conteúdo. Estamos em um momento de darwinismo editorial. Apenas os fortes sobreviverão ao final. E talvez o digital fosse aquele titã espreitando às sombras e aguardando seu lugar ao sol.
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