Com bastante bom humor e ironia, Margaux Motin narra o que ela passou depois que, com 35 anos, ela passa por um processo de separação e aprende a tocar sua vida. São páginas repletas de bom humor que desconstroem a visão da vida perfeita sob o casamento.
Essa não vai ser uma resenha ou uma crítica sobre esse excelente quadrinho da Margaux Motin. Por dois motivos básicos. Em primeiro lugar, porque se trata de uma série de esquetes bem humorados sem seguir exatamente uma linearidade (apesar de seguirem) e representarem fragmentos ou momentos da vida da autora. Até porque o objetivo dela não é exatamente contar uma história, mas desabafar sobre temas que ela precisa pôr para fora ou a incomodam. Mas, de uma maneira bastante engraçada e reflexiva. E isso entra na minha segunda justificativa que eu não gostaria de parecer um tolo que fica julgando a vida alheia. Nesse caso específico aqui, não é necessariamente uma biografia, mas temas dispersos. Então vou jogar conversa fora nas linhas a seguir junto com vocês, leitores, e quem quiser está convidado para participar nos comentários.
Motin acabou de passar por um período de separação em que ela agora se vê se reajustando a uma segunda vida de solteira. É curioso porque existe um lado julgador da sociedade que enxerga na mulher separada como uma espécie de cobra à espreita dos maridos alheios. Julgamento esse feito apenas sobre a mulher, porque o homem não passa por esse mesmo processo. Prova de nossa sociedade machista. Ao encarar essa nova realidade, é como se Motin voltasse no tempo e tirasse do armário roupas e hábitos de sua adolescência. Uma espécie de reaprendizado só que com um porém: ela tem uma filha e precisa conciliar esse seu novo lado com a educação e atenção que sua filha precisa. Logo no começo da HQ vamos percebendo o quanto ela tem dificuldades de se ajustar a essa nova fase por não entender o tom certo de suas ações e atitudes. É como alguém que conquistou sua liberdade e não sabe bem o que fazer com ela. O apartamento inteiro do solteiro. O enorme quarto ao qual você não sabe como aproveitá-lo melhor. E é na tentativa e erro que ela vai se tornando sua própria pessoa.
Seus esquetes são repletos de críticas, ironia e acidez. Às vezes o leitor pode até se incomodar. Gosto do jeito politicamente incorreto dela porque é revelador de uma sociedade que tenta julgá-la e cobrar dela um comportamento exemplar. E ela não é obrigada a isso. Motin conquistou sua carreira e independência e ela presta contas apenas a si mesma. A vida privada de alguém só diz respeito a ela mesma. Motin escolhe compartilhar um pouco dessa vida privada para desmistificar essa visão da recém-separada que deve se encolher em posição fetal e sofrer pelo marido perdido. Nada disso. Ela tem uma postura assertiva e sabe o que deseja para si. Seja a maneira como ela conduz a sua rotina de trabalho, a maneira como ela lida com sua filha (mesmo que seja bastante irresponsável, mas isso é um problema dela e não nosso) e como ela escolhe conduzir sua nova vida. Gosto da honestidade crua com a qual ela mostra determinadas situações como a ida na escola da filha, a organização para um dia de trabalho ou a fofoca com as amigas. Parece até que estamos acompanhando uma adolescente com os hormônios à toda, mas não é o caso. É uma mulher de 35 anos que já passou por várias experiências, algumas boas e outras ruins.
Talvez o tema central de Placas Tectônicas seja a liberdade. Aparentemente o casamento era uma prisão para Motin. Pelo menos no período próximo à separação. Posso deduzir isso com base nos próprios comentários que ela faz no começo do quadrinho. Parece que ela está presa, atada. E quando ela se separa, o horizonte é o único limite para ela. Seja vestir roupas cafonas, encher a cara todas as noites, andar pelada em casa falando palavrão. Não importa. É uma outra maneira de ver a vida e poder experimentar coisas que ela não podia antes por estar casada. Agora com uma vida mais estabilizada, ela pode se dar ao luxo de certas coisas que ela não poderia enquanto brigava para se estabelecer como adulta. Para aqueles que se casam cedo, parece existir todo um buraco de fruição e lazer que foram deixados para trás. Não sou o melhor exemplo por ser homem cis, mas só fui me casar aos 33 anos. Procurei aproveitar ao máximo o início da minha vida adulta. Bebi, dancei, saí, namorei, fiquei. Teve um momento da minha vida em que tive um insight de "agora preciso parar e me estabelecer". Foi quando conheci minha esposa. Tenho lá alguns arrependimentos de anos passados (quem não tem, afinal), mas sinceramente fiquei satisfeito com o que fiz. E é esse vazio anterior que Motin está tentando preencher.
Claro que é inevitável a gente encontrar outro amor em nossas vidas. E ela logo encontra essa pessoa. Motin precisa se abrir e não desconfiar. E depois da fase inicial, se apegar novamente a uma nova realidade. Ao descobrir suas conexões, entender o quanto essa pessoa a deseja em sua vida. Mesmo com toda a bagagem que ela traz junto de si. Mais do que isso, aceitá-la como ela é, maluca, irresponsável, carinhosa, tempestuosa. Ao se conhecerem, saber se ambos são metades da mesma laranja, mesmo que essa laranja seja meio torta. Quando passa tudo isso, Motin se depara com uma necessidade difícil: precisar se mudar para onde o seu novo amor vive. Ela viveu durante muitos anos em Paris, e agora precisa aceitar morar no País Basco, um lugar bastante diferente de seu lugar de origem. Duas dimensões surgem para ela: ela realmente tem que se mudar para junto de seu amor? E será que ela vai conseguir se acostumar a um lugar com costumes tão diferentes do dela? Mais do que isso: será ela aceita pela sociedade local? São os medos de alguém que precisa se arriscar se encaminhando para uma vida adulta mais avançada e que precisa fazer uma lista de coisas do que precisa para viver em um novo lugar.
Gosto demais do jeito otimista e desregrado da Motin. Isso porque essa postura a ajuda a encarar os problemas de frente. E ela não se importa mais tanto com o que a sociedade pensa a respeito dela. Em determinados esquetes percebemos o quanto ela fala o que pensa, o que a coloca em situações bem constrangedoras em algumas oportunidades. Mas, tudo isso são vivências que vão dando cor à sua vida e às páginas do seu quadrinho. Quando ela se muda para o País Basco ela comete algumas gafes aqui e ali, mas consegue ser bastante aceita e formar um grupo de amigas bastante divertidas. Claro que tem uma virada narrativa depois com um desgaste em sua nova relação e um novo aprendizado. Afinal, a vida é uma enorme montanha-russa, feita de altos e baixos, boas e más escolhas. Cada uma dessas escolhas é um tijolo a mais na construção que é o edifício ou a casa de nossas vidas. Acho importantíssimo discutir algumas pautas sobre independência feminina que Motin aponta em suas páginas. E ler o quadrinho com atenção, apreciando os quadros e as situações certamente vai abrir nossas mentes.
Quadrinho citado:
Ficha Técnica:
Nome: Placas Tectônicas
Autora: Margaux Motin
Editora: Nemo
Gênero: Ficção/Humor
Tradutor: Fernando Scheibe
Número de Páginas: 256
Ano de Publicação: 2016
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