O que caracteriza um herói e um anti-herói? Serão eles tão dissimilares assim? Na animação Re-Main, o criador faz um experimento interessante que pode ajudar aqueles que estão pensando em como construir o seu protagonista.
O que caracteriza um herói? O que o move? Como ele inspira aqueles ao seu redor? Essas geralmente são perguntas que servem como um ponto de partida para vários autores ao criarem suas obras. Mas, das últimas décadas para cá, o caminho do anti-herói também vem sendo explorado com suas temáticas de redenção e descoberta da amizade. Pensando de um ponto de vista prático, a jornada do herói e a do anti-herói são tão diferentes assim? Ao assistir uma animação nesses últimos meses me peguei pensando se na verdade os caminhos são apenas opostos, mas que convergem em um ponto comum, o da glória adquirida. Seja esta glória salvar uma princesa ou um reino, ou alcançar sua redenção ou conquistar amizades verdadeiras. Em um nível último de pensamento, tanto um herói como um anti-herói buscam aceitação. Nesta matéria, vou partir de uma animação curiosa para buscar outros exemplos de jornadas similares.
Bem, hora de buscar nas minhas estranhas inspirações o motivo de escrever essa matéria. Re-Main é um anime japonês de pólo aquático. Na trama, o protagonista sofre um acidente de carro que lhe custa parte de sua memória. É como se ele tivesse perdido alguns anos de sua vida, embora não esteja com amnésia permanente. Ele se lembra de seus pais, de sua irmã, mas todo o resto foi apagado. Antes de sofrer acidente ele era um dos melhores jogadores de pólo aquático do Japão que ainda estavam no fundamental. Seu acidente lhe custa seis meses de vida internado e ainda tira sua memória como jogador. Quando ele retorna ao seu cotidiano, seus companheiros de time vão até ele cumprimentá-lo, mas ele não se lembra de ninguém. Mais de um ano depois, Minato (o protagonista) se matricula em uma escola nova e acaba empurrado para o time de pólo aquático da escola que quase deixa de existir. Infelizmente, seu talento como jogador desapareceu, e ele tenta voltar a aprender a jogar enquanto faz amizade com os outros jogadores do time. Sua personalidade inocente, brincalhona e energética cria laços com todos os outros jogadores. Minato é aquele protagonista que une todos e tem um pouquinho de habilidade.
Só que acontece um plot twist na trama lá pelo sexto episódio. Minato sofre um novo acidente grave e vai parar no hospital. O que acontece com ele é a recuperação da memória que havia sido perdida, mas o tempo que ele passou com sua nova personalidade desapareceu, incluindo os laços de amizade que ele havia feito recentemente. Sua velha personalidade retorna e aí ficamos chocados de saber o quanto o personagem é abusivo, violento e rude. Ele deseja ser o melhor jogador do Japão a qualquer custo. E um time estranho como o que ele se encontra não é bom o suficiente para ele. Pior: ter perdido sua forma física e sua capacidade de jogar o deixa extremamente frustrado e ele culpa a mãe por toda a desgraça que lhe aconteceu. O fato de a mãe estar dirigindo o carro no primeiro acidente já era uma fonte de preocupação e culpa para ela, mas o protagonista joga isso na cara dela o tempo todo. Ou seja, temos um protagonista que é o inverso do que era na primeira metade.
Todo esse malabarismo narrativo do autor vai parecer estranho e forçado para nós, espectadores. Mas, serve como mote para aquilo que ele realmente pretende entregar que é essa mudança brusca. As nuances dadas na personalidade do protagonista nos permitem fazer um estudo de caso sobre o que caracteriza herói/anti-herói. Não considero a melhor história do universo, mas para quem estuda escrita criativa vale a observação. E sendo uma animação de doze episódios, sendo 6 para cada tipo de personagem, ótimo para avaliarmos as diferenças. Ou seja, a animação não tem uma história exatamente emocionante, mas, do ponto de vista criativo é interessante para analisar os caminhos tomados pelo roteirista quando se trata de dois caminhos distintos para o desenvolvimento de um personagem.
Procurando ver outros caminhos que são semelhantes consigo associar as figuras de Jorg Ancrath (protagonista de Prince of Thorns) e Jalan Kendeth (protagonista de The Prince of Fools) ambos escritos por Mark Lawrence. Jorg Ancrath é o típico anti-herói, sendo que no começo ele possui características vilanescas. É um personagem que fazia parte de um grupo de bandidos que depois acabam se envolvendo com a vingança de Jorg. A forma como ele realiza a sua vingança é cercada de meios pouco convencionais. Nos dois primeiros volumes da trilogia, o personagem apenas se foca na vingança com poucos momentos pelos quais ele reflete sobre sua natureza ou suas ações em si. Somente quando ele é colocado em contraponto ao príncipe brilhante que aparece no segundo volume e vemos trajetórias bem discrepantes é que o protagonista começa a realizar a necessidade de se responsabilizar pelo que fez. Percebam que na trajetória do anti-herói o tema da redenção é um longo caminho a ser traçado. O autor usa um príncipe virtuoso para lembrar ao protagonista e aos leitores como seria a jornada do herói. Quais os pontos necessários a serem ultrapassados por ele e o que ele precisaria recuperar. Na jornada do herói, o apelo ao lado sombrio faz parte de uma forma de testar as motivações e a virtude do mesmo. Já no do anti-herói, a redenção é um caminho espinhoso e ser lembrado do que o personagem fez no passado pode ser a motivação para que a jornada seja abandonada.
Por outro lado, Jalan é um herói relutante. Alguns o consideram um anti-herói, mas não enxergo dessa forma. Percebam que ele sai de uma posição de prestígio, buscando fama e renome para si mesmo. Logo no começo da jornada ele é colocado em uma posição complicada onde ele se vê obrigado a fazer uma aliança improvável e a partir daí seguir em uma missão da qual ele não sabe muito bem qual é o seu papel. Jalan é folgado, mulherengo, covarde. Embora estas sejam características indignas de um herói, elas podem fazer parte da jornada. O autor pode optar por fazer com que o seu personagem supere esses defeitos ou os contorne com ímpetos de herói em determinados momentos. Sim, é possível ser um herói folgado, mulherengo e covarde. Basta que o autor encontre maneiras de subverter a narrativa para criar as brechas necessárias. Vejam como se trata de uma opção para sair da linha de que a jornada do herói é cercada de clichês.
Outra dupla de personagens que podemos usar nessa matéria sobre dualidade se refere a Jon Snow e Jaime Lannister, personagens que fazem parte da série Crônicas de Gelo e Fogo, escrito por George R.R. Martin. É curioso pensar que Martin adota uma posição bem pragmática no que se refere a jornada de ambos, sem criar grandes viradas narrativas ou desvios. Jon Snow começa como o filho bastardo, embora honesto e virtuoso, é deixado de lado por conta de prerrogativas com base no sangue da família. Por ser um filho bastardo, não entra na linha sucessória e não recebe seus devidos privilégios, embora tenha uma vida confortável e até respeitosa. Sua opção acaba se tornando se dedicar à proteção da Muralha do Norte, um local de defesa contra o ataque dos Outros (criaturas sobrenaturais aos quais todos em Westeros temem). Na composição social do mundo de Westeros, ir para a Patrulha da Noite é renunciar aos seus direitos sociais. Ao chegar lá, Snow inicia a sua jornada de herói, com os obstáculos, as dificuldades, as dúvidas e as conquistas que ela lhe oferece.
Por outro lado Jaime Lannister começa sua trajetória na série também com características vilanescas. Contudo, diferentemente de Jorg (da série Prince of Thorns), Jaime apenas se desencantou com a tarefa de ser um modelo a ser seguido. É como se o mundo real tivesse lhe dado lições duras e ele não resistiu à tentação das trevas. Ou seja, ele falhou em sua jornada do herói em um primeiro momento e se tornou um homem indiferente aos problemas vividos por seus pares, que não mede esforços para alcançar seus objetivos. Segue o mote de sua irmã, Cersei, de que não há escrúpulos no jogo dos tronos. Mas, uma mudança começa a ocorrer dentro de si após conhecer Brienne, uma guerreira que tem de fato uma rusga com ele. O caráter simples e direto de Brienne cativam Jaime que vai revendo suas ações. Nesse caso, Martin traz um personagem que falhou na jornada do herói e faz com que ele caminhe a jornada do anti-herói, onde ele busca redenção e aceitação. Pouco a pouco o personagem vai refletindo sobre suas ações e começa a adotar posturas mais virtuosas. Para conseguir o resultado desejado, Martin faz um caminho mais tortuoso para colocar Jaime dentro de uma postura mais "heróica". Isso não significa que determinadas características mais vilanescas não estejam presentes. Um herói não precisa ser 100% virtuoso, mas isso é um assunto para outro momento.
Trouxe essas reflexões hoje porque acabei sendo inspirado a escrever por uma fonte meio inesperada. Só mostra como roteiros ou técnicas interessantes podem surgir de lugares pouco convencionais. Por esses e outros motivos sempre recomendo aos colegas a saírem do lugar comum e explorar outras formas de entretenimento. Nem sempre no nosso meio seremos capazes de encontrar certas saídas. Vejam: estou me referendo a uma animação japonesa de water polo. Deixo essas reflexões para os amigos e espero poder debater esse assunto nos comentários.
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