Na última parte desta matéria sobre tradução, Jana Bianchi vai comentar sobre gênero na língua inglesa e as peculiaridades por trás da transição para o português.
Playlist da série de postagens:
O português é uma língua muito capciosa. OU: percebeu que escrevi esse texto inteiro tentando escapar de flexões de gênero?
Escolhi encerrar com esse tópico porque eu amo a língua brasileira, mas ela sabe como ser capciosa, e todo dia é um show de lambada diferente que levo dessa malandra. E não estou só falando isso porque nossa língua tem algumas conjugações verbais e regras malucas fazendo quem traduz, escreve e revisa ficar parecendo a Nazaré Confusa diante de alguns dilemas, mas sim porque ela é estruturada de tal forma que escolher como falar é um verdadeiro ato político.
Opa, as coisas escalaram rápido demais, né? Vou mais devagar: o português brasileiro pode ser tudo, mas não é neutro. Em quase nenhum sentido, mas especialmente na questão de gênero. As palavras em sim têm gêneros, que nem sempre equivalem ao gênero de quem ela representa. A palavra onça, mesmo falando de um felino macho, é uma palavra feminina. “Um baita mulherão” é um elogio feito… bem, a uma mulher. E mesmo palavras supostamente neutras, como o adjetivo “inteligente” ou o substantivo “dentista”, precisam ser usadas com muito malabarismo para que nada na sentença denuncie o gênero da pessoa que estamos descrevendo ali.
Essa é uma questão com a qual temos que lidar de maneira consciente. Eu tive que me esforçar, por exemplo, para escrever esse texto inteiro sem definir o gênero das pessoas hipotéticas a quem me referi — “quem traduz” em vez do masculino genérico “tradutor”, ou do longo “tradutor ou tradutora” (que ainda por cima não contempla pessoas não-binárias ou de gênero neutro), “público final” em vez de “leitor” ou “leitor ou leitora” e assim por diante. E isso pode parecer bobo em um texto como esse, mas: 1) em algumas circunstâncias, uma escolha editorial dessa pode ter uma força tremenda e 2) a mudança vem da ação, e não só da ideia.
Sobre 1: minha primeira tradução da vida foi o livro Monstros e criaturas, um manual de RPG para crianças. Assim que comecei a traduzir as primeiras páginas, tive a sensação maravilhosa de que seria um livro que a Janinha de seus oito, dez anos amaria ler. E isso, meio sem querer querendo, me fez imaginar eu mesma mais nova como público-alvo da minha tradução. Eu, que passei a infância inteira gostando de “coisa de menino”, que fiquei feliz sem entender o porquê quando li a série Fronteiras do universo aos dez anos e me vi na protagonista incrível vivendo altas aventuras fantásticas. Com isso em mente, traduzir “você precisa ser muito corajoso” ou “você pode ser um caçador de dragões” passou a ser… insuficiente. Um pouco errado, até. Foi quando decidi fazer o possível para eliminar todas as marcações de gênero que dissessem respeito à criança lendo o livro. “Você precisa ser muito corajoso” virou “você precisa ter muita coragem”, e “você pode ser um caçador de dragões” virou “você pode caçar dragões”, para citar exemplos hipotéticos. E nossa, como isso fez diferença na direção que dei para a minha carreira — e gosto de pensar que fez muita diferença na vida de quem pegou esse livro para ler e se identificou. Não vou me alongar muito sobre essa experiência porque já falei sobre isso nesse fio do Twitter, mas também porque ainda não terminei.
Bom, tudo isso que eu falei aí em cima serve para todas as ocasiões em que precisamos escrever, não necessariamente traduzir. Mas tem hora que olha… traduzir de línguas de gênero neutro, como o inglês, deixam a gente de cabelo em pé. Por exemplo, já imaginou que dá para passar facilmente páginas e páginas de um texto em inglês sem saber os gêneros de personagens de uma história, mas que fazer isso em português dá um trabalhão danado? E se quem escreveu quiser manter segredo e fizer de propósito? A pessoa que está traduzindo que lute para resolver isso. Recentemente, o incrível e queridíssimo Petê Rissatti me contou que passou por uma situação dessa (com um livro cujo título não me lembro mais), a ponto de ter que voltar a tradução inteira apagando as marcações de gênero de uma determinada pessoa porque fazia parte da trama descobrir de que gênero ela era só no final (o que me lembra que o próprio Petê escreveu esse texto muito legal sobre gênero na tradução).
E assim, essa questão toda de gênero é só um dos aspectos capciosos da nossa língua. Só para não terminar o texto sem destacar algumas outras coisas, aponto 1) a preferência do português pela voz ativa — o que faz a gente ter que dar altos duplos twist carpados idiomáticos para determinar certinho o sujeito de orações em inglês que se viram muito bem obrigada sem eles e 2) o tamanho exagerado da terminação dos advérbios de modo, que é “-mente” em português versus um simples “-y” na maioria dos casos em inglês — o que faz a gente ter que cortar loucamente alguns advérbios que quem escreve coloca exageradamente no texto, mas tudo isso muito cuidadosamente para não acabar invariavelmente simplificando demais o original (alerta de advérbios usados ironicamente no texto).
Conclusão: há muito mais entre o céu e a terra da tradução do que sonha nossa vã vontade de corrigir a tradução alheia. Traduzir é um trabalho difícil, complicado e cheio de pegadinhas, mais parecido com escavar um fóssil linguístico do que com jogar um texto em uma língua no funil de uma fábrica e ir recolher a tradução pronta e indefectível do outro lado. É uma profissão que exige muita pesquisa, muita curiosidade e muito, muito carinho pelas línguas envolvidas — especialmente pela de chegada — e pelo material que está sendo trabalhado.
Quero terminar o texto agradecendo todas as pessoas que traduzem. Ainda que Turma da Mônica, Menino Maluquinho e Castelo Rá-Tim-Bum tenham uma enorme parcela de participação em quem sou hoje, eu não seria a mesma pessoa se também não tivesse experienciado A História Sem Fim e Harry Potter. E não é exagero dizer que as palavras de Maria do Carmo Cury e de Lia Wyler forma tão importantes na minha vida quanto as de Michael Ende e J. K. Rowling.
Há poucos anos, quando eu ainda trabalhava com engenharia, uma das coisas que mais me incomodava era a sensação de que não estava fazendo nada de útil para o mundo. Por um tempo, cheguei a achar que a única alternativa para sentir essa satisfação seria trabalhar com saúde ou segurança. Mas aí enxerguei a tradução sob a ótica justa e descobri que esse é o jeito de contribuir com o funcionamento e com a beleza do mundo da forma que mais combina comigo. Traduzir é um dos ofícios mais subvalorizados que eu conheço, e ainda assim quem se dedica a isso continua a escavar esqueletos fascinantes inteiros, ossinho por ossinho.
Se você terminou esse texto enxergando a tradução com outros olhos, vou te fazer uma proposta: abra o livro que você mais ama, ou talvez o que está lendo nesse momento, e veja quem traduziu essa obra. Se quiser e puder, vá nas redes sociais e mande uma mensagem de carinho para essa pessoa. É o jeito mais simples e valioso de traduzir a importância que ela tem para você.
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*Jana Bianchi é escritora, tradutora de livros, quadrinhos e jogos de tabuleiro, editora-chefe da Revista Mafagafo, cohostess do podcast Curta Ficção e passeadora de lobisomens. Entre outros, publicou a novela Lobo de Rua (2016, Dame Blanche) e contos em antologias e revistas como Trasgo, Somnium e Dragão Brasil. Pode ser encontrada no site janabianchi.com.br e no Twitter e no Instagram como @janapbianchi.
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