Em um quadrinho informativo e dissecando a história da cannabis nos EUA, Box Brown nos mostra como existiram diversas críticas ao seu uso. E como muitas delas se originaram de campanhas de desinformação.
Antes de mais nada, queria ser bem honesto no início desta matéria e dizer que não tenho uma opinião formada sobre o tema. O que eu pretendo apresentar aqui são os argumentos e o ponto de vista do Box Brown sobre a ilegalização da maconha. Não significa que eu sou contra ou a favor, só que eu não tenho uma opinião formada per se. Conheço pouco sobre o assunto e sou favorável a gente conhecer sobre algo antes de opinar. Porque do contrário a gente acaba repetindo bobagens do senso comum. Aliás, se temos um país degradado do jeito que está é justamente por que não corremos atrás de informações corretas e preferimos ficar nos achismos. Dito isso, vamos à matéria.
Box Brown é um autor de quadrinhos que trabalham com uma perspectiva informativa sobre um assunto. Seja contando uma biografia ou um tema no geral. Sua arte é eficiente no sentido de que ela funciona para nos apresentar os seus argumentos. Não é uma arte revolucionária, mas a gente consegue compreender o que ele está dizendo. Lembra até aqueles vídeos instrutivos corporativos. E acho que nem o próprio artista se propõe a fazer algo desse tipo. Portanto, não cabe fazer uma avaliação ou uma crítica sobre a arte em si. Em relação ao tema propriamente dito, a narrativa não é totalmente cansativa (fica um pouco lá no final) e consegue ser informativa e divertida. A percepção que eu tenho é que o Box Brown tem um bom timing entre nos dar as informações e partir para uma narrativa mais leve. Algumas cenas são engraçadas mesmo quando um tema é mais pesado. Gostei bastante da HQ dele o que me incentivou até a buscar outras com essa pegada.
Abordando os argumentos de Box Brown, na sua visão o consumo de cannabis existe desde o início dos tempos. Diferentes culturas buscaram em ervas ou produtos fitoterápicos uma solução para momentos mais difíceis. As drogas de entretenimento fizeram parte seja de rituais religiosos, momentos de passagem ou parte da culinária local. O autor remonta a histórias de origem divina para nos contar como o bhang, uma espécie de leite misturado com cannabis sativa era uma tradição hindu milenar. Ela remetia aos deuses criadores e durante milênios foi essencial na vida do homem comum. A partir do século XIX, os ingleses iniciaram uma campanha forte de combate ao uso da erva. O detalhe é que a cannabis no geral era empregada junto de processos meditativos, para relaxamento. Na cultura dos sadhus (homens sagrados na Índia), a cannabis permitia o contato com os deuses. Estas pessoas são consideradas intocáveis por conta de seu grau de proximidade com eles. A visão mais crítica da cannabis se apresenta como uma posição moralista em um momento em que os países europeus iniciavam uma cruzada pela civilização na África e no Oriente. Era o lema de educar a população para salvá-la.
Várias pesquisas foram realizadas à época buscando compreender os malefícios da cannabis para as pessoas comuns. Hoje sabemos que as substâncias canabinoides tem uma função de relaxamento muscular, estímulo a uma região do cérebro que lida com a criatividade, a redução do stress e de possíveis inflamações. Claro que como qualquer tratamento fitoterápico ele precisa de uma orientação para a correta dosagem. A afirmação de Box Brown pode ser associada a outras ervas que se tornaram remédios como o Anador (sim... é uma erva...), a Novalgina, a pimenta-cereja (ou aroeira) e tantas outras. Qualquer uma dessas ervas (ou medicamentos) se usado em excesso pode causar diversos efeitos colaterais. As drogas psicotrópicas precisam ser analisadas com cautela. Muitos dos questionamentos que temos hoje (inclusive eu mesmo) estão relacionados àquelas que induzem alucinações ou estados alterados da mente. Ou drogas que causem dependência. E não, cannabis não causa dependência. Somente quando misturada a outras substâncias. Quando as primeiras pesquisas foram iniciadas na Inglaterra, não se descobriu nenhum efeito adverso no seu uso, seja medicinal ou recreativo. Box Brown alega que mesmo com uma tecnologia mais primitiva, os testes empíricos realizados não demonstraram qualquer problema de saúde ligado ao seu uso. Pior, os médicos alertaram que o consumo de álcool era bem mais nocivo que o uso de cannabis.
É então que Box Brown atravessa o oceano e chega na América. Primeiramente ele comenta como a cannabis chegou no Novo Mundo. Durante as Grandes Navegações, o cânhamo empregado em velas de navio era um subproduto da colheita de cannabis. Para poder manter a exploração colonial, se tornou necessário a sua produção em terras locais. Grandes plantações forneciam a matéria-prima necessária para a confecção de velas. Só que incas, astecas e maias já estavam acostumados com o uso de drogas recreativas como o peyote e a ayahuasca, por exemplo. A cannabis produzida localmente para o fornecimento de cânhamo era possuía um caule mais fibroso. Mas, a população local descobriu que os botões e as flores podiam ser consumidos, então iniciou-se uma concentração na criação de espécies vegetais que tivessem mais botões. É a partir daí que o consumo de cannabis se difunde como uma prática local que estimulava a amizade e a solidariedade entre os nativos. A cannabis chega aos EUA após a Revolução Mexicana na década de 1910 quando ela atravessa a fronteira para os estados americanos mais ao sul. Já há alguns séculos que a Igreja católica era proibitiva quanto ao uso de cannabis porque se alegava que ela permitia o contato do usuário com o místico. Isso era absurdo segundo a doutrina católica e, então, a instituição iniciou um processo de perseguição.
Mas, as campanhas mais pesadas contra a cannabis se iniciam no período da Lei Seca. Principalmente após a crise de 29 quando os americanos queriam a expulsão dos imigrantes mexicanos que, segundo deles, roubavam suas oportunidades de emprego. A xenofobia tomou conta da sociedade americana, algo que se estende até os dias atuais. Qualquer coisa era motivo para tecer críticas aos mexicanos. E o uso de cannabis foi um desses motivos. Iniciaram-se várias campanhas, com destaque para Harry J. Anslinger, alguém que dedicou a sua carreira a perseguição do consumo. Sua campanha envolvia relatórios forjados, o uso da mídia marrom e um contato com grupos religiosos que o ajudaram a transformar a erva em um produto ligado ao demônio, que causa loucura, tendências assassinas. Vale o destaque para a teoria do trampolim, ou da maconha como porta de entrada para drogas mais pesadas. Algo totalmente fictício, segundo Brown, e não sustentado por nenhuma pesquisa médica ou científica. E algo que se tornou parte do saber comum sobre o uso de cannabis.
Brown argumenta ainda que o preconceito contra negros e latinos foi potencializados por eles serem associados ao consumo de cannabis. O uso da erva foi relacionado ao aumento de assassinatos nos EUA, algo falseado por notícias sensacionalistas em jornais. Até mesmo pessoas ligadas ao jazz sofriam com o assédio das forças policiais. Brown mostra o caso de Billie Holiday e Louis Armstrong que foram presos por porte de cannabis. O agravante disso é que os usuários brancos de cannabis se ampliaram ao longo das décadas seguintes, mas as forças policiais se focavam em apreender negros e latinos. Para reforçar a política de combate à maconha e outras drogas, o governo americano endureceu as apreensões. Bastava portar qualquer quantidade de substância para ser preso. Isso fez com que a população carcerária aumentasse em centenas de milhares nas próximas décadas.
O impacto mundial começou a partir do surgimento da Organização das Nações Unidas e Anslinger foi um dos responsáveis pela política de combate à cannabis. Vários relatórios exagerados foram apresentados à comissão de análise e muitos anos se passaram até que a ONU tivesse uma postura precisa sobre o problema. A maioria dos países foi favorável à condenação do porte e do uso de maconha, mesmo quando a substância fazia parte de outras receitas como a do bhang indiano. A Índia acabou ficando em uma situação delicada porque seus principais aliados cobravam uma postura taxativa do país. Só que a cannabis era parte da cultura e da religião indianas. Passaram-se vinte e cinco anos até que a Índia de fato condenasse o uso e, mesmo assim, os sadhus continuam a usar ignorando as leis proibitivas. As autoridades indianas não ousam apreender os sadhus por conta de seu caráter sagrado dentro da cultura local.
As coisas começam a mudar a partir da década de 1980 principalmente por causa das casas de apoio e de algumas pessoas que passaram a lutar pela mudança das leis. Dennis Perron e Mary Rathbun lutaram pelo uso medicinal da cannabis, voltada para aliviar dores e inflamações. Já se sabe, por exemplo, que a cannabis é benéfica para o intestino e como analgésico. Novas leis de consumo medicinal começaram a ser avaliadas pelos parlamentos de diversos estados e pouco a pouco ela vai conquistando mais espaço. Na visão de Brown, essa visão preconceituosa contra a cannabis vai permanecer e novas justificativas surgirão no futuro. Ele é um pouco pessimista neste sentido e não há como culpar diante de uma política tão persecutória contra seu uso.
No geral, a HQ propõe importantes reflexões para o leitor. Apresenta informações colocadas de forma organizada em que as críticas são desarmadas a partir de argumentos lógicos. Brown faz uma boa defesa de que a condenação da cannabis veio de uma política pública mal intencionada que se aproveitou de informações desencontradas sobre o seu uso. Pior, houve mentiras e desinformações inseridas no meio do processo de forma a auxiliar interesses empresariais e de grupos conservadores. Resta saber como serão os próximos anos.
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