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Foto do escritorPaulo Vinicius

A vida sexual dos super-heróis

Roteiros de histórias de super-heróis quase sempre tem uma postura delicada no que diz respeito a lidar com a vida sexual de seus protagonistas. Mas, esse assunto voltou à tona e, em uma prova de que os tempos mudaram, precisamos discuti-lo.



Histórias de super-heróis são escritas há mais de um século. Quase todo o tipo de temática já passou pelas páginas dos quadrinhos como a Segunda Guerra, o preconceito, o terrorismo, a violência doméstica. Roteiristas pensaram em casamentos, adultérios, separações, casais LGBT. Nos dias de hoje existe uma ampla variedade de temas sendo trabalhados por roteiristas das mais variadas vertentes. Mas, um tema me parece ser ainda um tabu: sexo. Sim, sexo. Relações sexuais. Não digo que quadrinhos de super-heróis devam se tornar verdadeiras apologias de filmes de soft porn, mas determinadas posturas pudicas não combinam mais com o que é apresentado pela nossa sociedade.


A história começou a partir da revelação de um dos produtores da série animada da Harley Quinn, que apesar de ser um desenho tem um tom mais adulto e de humor negro, bem na pegada dos desenhos do Adult Swim. Na série, vemos a trajetória da Harley Quinn depois que ela se separa do Coringa e tenta viver sua própria vida. Conversando a um veículo de notícias, um dos produtores comentou que a DC vetou uma cena em que insinuava o Batman fazendo um sexo oral na Mulher Gato. Nada explícito, apenas insinuado. Foi o suficiente para gerar uma discussão acalorada nas redes sociais sobre o propósito de uma cena desse estilo. De um lado temos defensores alegando não haver problema nenhum e que na maior parte das vezes são as mulheres que são objetificadas e submissas. Enquanto do outro temos a preocupação com o público que está consumindo as HQs. A justificativa da cúpula da DC foi o fato de eles se preocuparem com um público mais infantil que procura esses personagens. Há uma percepção na editora de que isso poderia afetar a forma como crianças e adolescentes em fase de formação perceberiam o seu produto.


Mesmo com as revoluções que ocorreram nas últimas décadas, o mercado de quadrinhos de super-heróis Marvel e DC é bem complicado. Apesar de ter havido uma diversificação maior no público que consome esses produtos, é fato que existe um grande público que é vocal em seu conservadorismo despropositado. E isso se reflete nas próprias políticas de publicação das grandes editoras. Há alguns anos atrás, a Marvel tentou uma iniciativa que ela chamou de All New and All Different. A filosofia por trás dela era a de dar um novo gás a personagens que existiam há décadas. Seja passando os poderes a herdeiros ou criando novas origens. Então o foco passou para personagens como Miles Morales, Kamala Khan, Riri Williams entre outros. Colocando personagens novos e com origens étnicas diversas se buscou atrair um público mais novo. Data desse período o casamento de um personagem gay com o seu parceiro (Jean-Paul, que fazia parte dos X-Men), algumas personagens se descobrindo homossexuais. Ou seja, diante de um mundo mais livre e diverso, a Marvel tentou inovar. Infelizmente não funcionou. Quando falamos de uma sociedade contemporânea, não posso pensar com olhos do passado. A iniciativa da Marvel não funcionou não apenas por causa de seu público e de alguns outros fatores, mas porque a filosofia All New and All Different era só um pensamento iluminista em uma sociedade pós-moderna. Onde eu quero chegar? Oras, não posso criar personagens diversos e representativos apenas atendendo a uma cota. Os personagens precisam de uma razão de ser, uma justificativa adequada para estarem ali. E onde isso entra no que diz respeito a relações sexuais entre super-heróis? Bem, ela não estava ali. Nunca foi debatida.



Existem dois agravantes. O primeiro deles é uma mentalidade vinda da época dos pulps e das histórias de capa e espada. A mulher nos quadrinhos sempre foi entendida como um objeto decorativo ou de prazer. O "eyecandy". A mulher que aparece para ser a donzela em perigo ou o incentivo à vitória. À medida em que os processos de produção criativa se aprimoraram, as mulheres se tornaram cada vez mais sexualizadas em um mundo que se abria em paralelo às HQs que se tornavam o esconderijo dos rejeitados. Grande parte do público que brada aos quatro ventos contra um protagonismo feminino maior são de crianças que nunca cresceram. São homens que se enxergam no lugar dos heróis que tanto idolatram, ou que desejam ser como eles. E é importante para eles que a "harmonia" de seu mundo não seja mexida. E aí vem uma camada ainda mais complexa. Porque é possível ter a sexualidade entre heróis. Ninguém nunca reclamou das polêmicas capas em que a Mulher Aranha foi desenhada por Milo Manara em posições provocativas. Ou das mulheres com super seios na década de 1990 em que seus corpos eram hipersexualizados. Ou da Harley Quinn aparecendo em roupas cada vez menores. Essa não é a questão. A questão é que os homens precisam estar no controle de como a sexualidade deve ser conduzida. O eyecandy precisa me servir; existe para me dar prazer. Nunca por algo que seja de mão dupla.


O segundo deles é o surgimento de toda uma geração de fãs que conhecem os super-heróis mais a partir do cinema e das séries do que dos quadrinhos. Isso torna a discussão complexa. A percepção acerca do personagem se altera dependendo de onde ele está sendo exposto. Estamos falando de personagens que existem há décadas. Por exemplo, o Superman tem mais de oitenta anos. A DC acaba em um limbo onde ela precisa decidir se ela quer um produto amigável ao consumidor ou ela deseja incorporar novas bases de fãs. Não é possível equilibrar as duas bolas. Existe uma parcela expressiva do público que se afasta dos super-heróis porque eles não apresentam pautas relevantes ou porque eles deixam de ser reais após o leitor alcançar uma certa idade. Por outro lado, a DC precisa pensar nas crianças que se espelham nestes personagens. Entenderam a contradição? Não há um caminho certo nesta decisão.


Alguns se questionam sobre a animação em si. Se ela não seria feita para um público menor. Não exatamente. A animação claramente é voltada para um público jovem adulto. Explorar temas que envolvam a sexualidade faz parte do menu. Não à toa, a primeira temporada da animação explorou a relação entre a Harley e a Pamela Isley, a Hera Venenosa e a Harley precisando lidar com seus sentimentos que haviam se transformado. E se descobrindo apaixonada por Pamela. Algo que foi bastante elogiado à época pela ousadia. E que não foi algo voltado para ser sexual, mas uma descoberta propriamente dita, algo que foi trabalhado ao longo de toda uma temporada com as personagens tendo angústias, dúvidas e emoções. A animação é também bastante madura em sua exploração temática, tendo comentado até sobre a relação abusiva entre o Coringa e a Harley. Eu não consigo chamar os desenhos do Adult Swim como algo voltado para crianças. Ou Bojack Horseman. Voltamos a uma concepção tola de que animações ou desenhos animados tem esse público como alvo. E já há algumas décadas que as animações subiram a régua. Não é o estilo de traço que vai determinar o público-alvo de uma animação, mas as temáticas abordadas. A nova animação de She-Ra é revolucionária, mas ela não é para todas as idades. Existe uma faixa mínima.



Existe uma última questão, mais complicada de se debater. E essa tem a ver com a nossa própria formação social. Embora caminhemos a passos largos para uma sociedade mais libertária, aberta e consciente, ranços de um patriarcalismo e um machismo tolos ainda permanecem. E a sociedade sofre espasmos para aceitar que está se modificando. As mulheres tem compreendido cada vez mais que seu status quo mudou e que elas estão se apropriando de novas posições e realizando novos questionamentos. Por essa razão, o número de feminicídios aumentou. Aliás, até surgiu essa palavra, já que tudo era enquadrado como homicídio. A partir do momento em que as mulheres passaram a relatar o que estava acontecendo dentro de seus lares, os crimes que ficavam debaixo do tapete aumentaram. Eles sempre estiveram ali, mas eram obscurecidos pela sombra da ignorância. E o que isso tem a ver com sexualidade? Simples, as mulheres hoje estão mais conscientes de sua sexualidade e de sua capacidade de dar e receber prazer. Em uma sociedade patriarcal, a mulher é submissa a um homem que exige seu prazer. Não importa se a mulher está ou não recebendo. Só que hoje os papéis estão quase iguais. Hoje se compreende que uma relação sexual saudável implica em um equilíbrio de prazer. Dar e receber. O homem ainda tem dificuldade em aceitar a necessidade de dar prazer à sua parceira. De que isso é bom e valoriza aquela que está ao seu lado. De explorar seu corpo e entender quais os pontos que a deixam feliz.


Nas cenas de amor entre super-heróis ainda é a mulher quem dá prazer a seu parceiro. Não o inverso. Temos exceções à regra, mas elas são raras e não pertencem às grandes editoras. Como um veículo de entretenimento para algumas pessoas, seria importante que os quadrinhos começassem a abraçar mais essa temática. De forma a avançarmos com determinados temas e discussões. Seria maravilhoso se deixássemos nosso machismo nas areias do tempo de uma vez por todas. E não houvesse a necessidade de escrever um artigo como esse para comentar sobre uma polêmica que a mim não faz nenhum sentido. Até porque o que os produtores propunham não era uma cena pornográfica, mas algo sensual e representativo do amor entre dois personagens. Mais um que vai para a conta da necessidade de se agradar a um fandom nocivo e retrógrado.






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