Na matéria de hoje, vamos conversar sobre a expectativa antes de uma leitura. É bom alimentar expectativas ou isso prejudica a forma como pegamos um livro?
Aquela série de fantasia que vocês curtem vai ter um novo volume publicado esse ano e você está curioso com os próximos acontecimentos? Mal pode esperar para pôr as mãos nele? E aí quando você começa sua leitura algumas escolhas do autor te decepcionam e levam para um caminho inesperado. Ou o resultado pode te surpreender e levantar outros personagens. Assim é o mundo da expectativa ou, como se tornou um jargão do mercado editorial, o hype: criar ansiedade e curiosidade para as próximas aventuras. Entre os críticos literários, diz-se que a criação de expectativas é uma faca de dois gumes porque pode representar o absoluto sucesso ou um retumbante fracasso. E o mundo da literatura se rendeu a essa indústria da fantasia e do imaginário trabalhando com os sentimentos do leitor. Só que ainda é possível ler um livro sem qualquer expectativa?
Na cultura pop referimos a explosão dessa nova forma de marketing aos filmes da Marvel. Não que já não existisse essa forma de propaganda antes, mas essa novidade se mostrou eficiente para cativar os leitores. Claro que essa não é uma informação precisa já que outros produtos da TV e do cinema anteriores ao chamado universo cinematográfico da Marvel já brincavam com nossa curiosidade. Confesso que sou fã de uma série dos anos 2000 chamada Fringe, uma grande história de ficção científica que se tornou bastante cultuada e começou a brincar com a ideia de inserir easter eggs nos episódios, ou seja, pequenos objetos ou imagens ou situações espalhadas pela tela e que forneciam pistas sobre o futuro da série. O curioso de Fringe é que ela era uma série procedural (tipo CSI ou NCIS) com alguns temas de ficção científica como viagens no tempo, experiências com DNA e espionagem industrial. A série se vendia como um procedural que investia na fringe science ou ciência de fronteira. A série se encaminhava para um cancelamento iminente na segunda temporada (tendo recebido alguns episódios para uma terceira temporada de conclusão) quando é transmitido um episódio considerado icônico pelos fãs (o episódio 18 com o título Jacksonville) onde tudo mudou. A série foi salva duas vezes do cancelamento e fechou com cinco temporadas e aplaudida pelos fãs. Admito que nos idos daquele período, Anna Torv era o meu crush (quem diria que eu veria Anna Torv décadas mais tarde em The Last of Us). E o John Noble se tornou um daqueles atores em que procuramos acompanhar tudo o que ele fez (a última vez que vi algo do Noble foi como um personagem importante do filme de Duna).
O ato de criar expectativas se relaciona com um lado de nosso cérebro que é afinado com a curiosidade. Desde antes de nos organizarmos em sociedade sempre buscamos entender o funcionamento das coisas, queremos saber a origem do mundo e contar nossas histórias. Aliás, a curiosidade é uma característica que nos aproxima do reino animal. A diferença reside aonde esta curiosidade é direcionada. Dependendo do tipo de estímulo, essa curiosidade pode ser direcionada em alguma direção específica. Seja a criação de logos, uma propaganda recorrente, uma série de imagens sequenciadas. Existem gatilhos para melhor explorar o fator curiosidade. No mundo editorial, frequentemente se usam chamadas, uma apresentação direta seja por parceiros ou membros da equipe ou até matérias de jornal. Tudo depende de quanta verba a editora separou para o marketing do produto. A forma e o alcance vão determinar o quanto uma campanha vai custar, variando de inserções baratas e pontuais a todo um projeto que pode envolver mídias distintas sendo mais cara.
O mercado americano é mais maduro nessa indústria de criar expectativas. Um título pode ser divulgado com mais de um ano de antecedência. O resto da campanha de divulgação entre o release de abertura e a data de lançamento vai ficar nas mãos da editora e do autor. A editora pode trabalhar a divulgação da capa em outro momento e até jogar artes conceituais nas redes sociais. Tudo seguindo um cronograma amplo e recheado de pequenas paradas. Já o autor auxilia a aumentar o alcance das propagandas da editora. Ele pode fazer lives comentando um pouco sobre os personagens e o mundo que ele criou. Existe a possibilidade até do envio de ARCs (advanced reader copy, ou versão avançada de um livro, sem edição ou formatação) para parceiros. A ajuda de influenciadores serve para capitalizar as vendas. Tudo é um imenso processo que se estende em etapas e cada uma delas ajuda a aumentar a expectativa do leitor.
Por outro lado a criação de expectat9iva pode ser uma faca de dois gumes. Isso vai desde as campanhas de divulgação até o resultado final. Uma divulgação mal conduzida pode prejudicar muito o produto final. O produto precisa ser explicado de uma forma clara e didática para que o leitor consiga entender do que se trata a obra. Um livro é um produto mais textual, mas um banner, uma logo interessante, uma descrição do mundo ou dos personagens pode ajudar na compreensão do todo. Lembrem-se: um livro não se vende sozinho, por melhor que ele seja. A campanha precisa ser contínua de forma a manter o interesse e a não tirar o livro do radar do leitor. É preciso ter curiosidade com a informação que é passada. Se o seu livro é sobre dragões, não fale sobre galinhas. Confusão ou informação contraditória pode afetar as vendas.
A respeito da publicação e da leitura do material, um nível de expectativa mal direcionado pode levar a críticas excessivas sobre a história. Nunca prometa o que não pode cumprir. Vários autores tem caído nessa armadilha e isso prejudica projetos futuros. Sabemos que a leitura é subjetiva e cada leitor vai se apropriar da história à sua maneira. Nem todos vão curtir um direcionamento que você deu à sua história. E isso é normal. Um aviso de alerta fica para o autor que acaba mudando o roteiro de sua história por causa da reação dos leitores. O feedback é importante e deve ser considerado, mas existe um limite para isso. Uma crítica negativa não pode levar à incoerência narrativa. Já vi vários trabalhos que começaram com ideias fascinantes, mas terminam estranhos e confusos devido à interferência dos leitores no fazer literário do escritor. Ao tentar ajudá-los, o autor pulverizou tanto sua história que ela perdeu sua essência original.
Respondendo à pergunta original, não creio ser exatamente possível não ceder ao hype, à expectativa. Somos expostos a uma explosão de informações o tempo todo. Antes da ascensão das redes sociais havia um certo ar de mistério no lançamento de um livro. Hoje queremos saber o que será lançado e quando será lançado. Queremos entender os bastidores da publicação, até nos divertimos com planilhas de evolução da escrita de um livro que será lançado no futuro (os famosos gráficos de escrita do Brandon Sanderson). Montamos listas do que queremos ver publicado. Quando se trata de um livro inédito, este depende do aporte das redes sociais. Sem falar na nossa bolha de convivência que espalha a informação com muita velocidade. É, meus querides leitores: é bem difícil ler sem expectativa.
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